“Caçadores de Anjos”: comentário sobre o sistema de prostituição em Portugal
As histórias de vidas relatadas no filme Caçadores de Anjos, da autoria da Associação O Ninho, são reias e em tudo coincidentes com as histórias de vida das mulheres entrevistadas para o Estudo diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa, realizado e publicado pela Plataforma em 2021, coordenado pela Professora Maria José Núncio.
Vejamos:
Das entrevistas realizadas, foi possível perceber o padrão comportamental e as vivências de quem se encontra, ainda, no sistema da prostituição. Fizeram parte desta amostra 24 mulheres, com idade entre os 24 e os 55 anos, das quais 79% permanecem no sistema de prostituição.
Segundo os testemunhos, verifica-se um predomínio de situações de pobreza nas famílias das mulheres entrevistadas, bem como empregos pouco qualificados; acrescem percursos familiares marcados pela criminalidade, onde prevalece uma elevada violência física, verbal e sexual, fruto de relações abusivas e dependência emocional.
A prostituição acontece dentro de bares, apartamentos, ruas, casas de massagens ou webcams, em sites na internet. A entrada no sistema de prostituição dá-se, maioritariamente, devido à necessidade económica. Parte das entrevistadas confirma a ausência de alternativas ou o aliciamento enganoso. A vivência dentro do sistema acontece sem acompanhamento médico regular, com a falta de conhecimento acerca dos recursos sociais e de saúde disponíveis, com incidência de doenças mentais. Inerente a este ciclo é a violência, marcada de várias formas, perpetradas por proxenetas e compradores de sexo: violação, agressão física e verbal ou perseguição.
A saída do sistema acaba por estar dependente não só da vontade manifestada destas mulheres, mas do reconhecimento, por parte de entidades públicas e de serviços, das múltiplas necessidades de apoio que implica a saída.
Ora, o sistema de prostituição envolve variados sujeitos, com níveis de poder distintos, mas cujas dinâmicas relacionais são fundadas na assimetria de poderes.
Quisemos, assim, conhecer o perfil de compradores de sexo através das entrevistas a mulheres no sistema de prostituição e a profissionais de diversas áreas que lidam com mulheres em situação de prostituição.
Os compradores de sexo são, maioritariamente, homens casados, com estatuto socioeconómico diverso e idades acima dos 40 anos; no entanto, verifica-se um aumento do número de jovens rapazes que compram sexo, quer em contextos “recreativos”, quer através da internet.
Quando falamos na compra de sexo, existe uma regularidade no comportamento de quem o realiza. Há assiduidade nos locais frequentados, dependente da sua capacidade financeira, e ainda uma expectativa de oferta variada e regular de mulheres. Este tipo de procura objetifica sexualmente as mulheres, atribuindo-lhes um “valor” consoante preferências etárias, características físicas e até origens ético-raciais, tornando a relação em algo assimétrico de poder, geradora de abuso e violência.
E o que pensam as e os profissionais que intervêm com as mulheres no sistema de prostituição? Foi possível verificar a prevalência da consideração da prostituição como um problema social, sendo reconhecidas as vulnerabilidades socioeconómicas que condicionam a entrada e a permanência das mulheres dentro do sistema.
De um universo de 38 entrevistadas/os, com idades entre os 24 e os 77 anos, o enquadramento legal da prostituição é o único ponto que difere nas entrevistas. A referência aos direitos humanos e à dignidade das pessoas é central no discurso de quem defende o abolicionismo. Do total de entrevistadas/os, apenas 15% é favorável ao reconhecimento da prostituição como atividade profissional.
Os principais obstáculos identificados estão ligados à escassez de apoios, às assimetrias nacionais e à ausência de articulação de respostas a este problema. Também a consciência de representações sociais negativas, quer no desenvolvimento de políticas públicas, quer no acesso a respostas sociais são apontadas como dificuldade. Em termos de necessidades de resposta, a nível macro, as e os profissionais identificaram os apoios e a consciencialização social deste tema e, num plano micro, a intervenção psicossocial individualizada. Destaque ainda para a importância da criação de planos de apoio ao nível autárquico.
E que informação nos chega através da Comunicação Social?
Para este estudo foram analisados cerca de 290 anúncios sobre prostituição em jornais. Nestes, registou-se uma hipervalorização de determinadas características físicas e psicossociais, associadas a origens nacionais e/ou éticas das mulheres. Há também uma preferência por determinadas práticas sexuais, tornando submissa a sexualidade da mulher relativamente à do homem.
Foram igualmente analisados títulos de notícias em 2 jornais nacionais (2019-2020). Nestes, verifica-se a existência de um padrão de vulnerabilidade, agressividade e discriminação. É visível um reforço dos estereótipos e preconceitos sociais relativos à prostituição e aos mitos que lhe estão associados.
A associação da prostituição ao crime acaba por influenciar a opinião pública na categorização da prostituição como comportamento desviante, mesmo quando os próprios títulos revelam que as mulheres em situação de prostituição são vítimas de crime. Na maioria das notícias que aparecem na seção relativa ao crime, este aparece como lenocínio ou ligado ao tráfico de pessoas para fins sexuais e redes organizadas.
Enquanto questão social, a prostituição é complexa: liga-se a outros problemas sociais que consubstanciam a exclusão social – é um sistema que tem como pano de fundo as ditas zonas sombra da sociedade. É também um fenómeno social com dimensões de grande subjetividade, relacionadas a valores e juízos morais, representações e estereótipos sociais, que reforçam a exclusão, a segregação e as assimetrias de poder (objetificando a mulher prostituída e aumentando a supremacia da indústria do sexo e dos compradores).
Assim, no âmbito do estudo e das suas principais conclusões, apresentamos uma proposta de Estratégia Nacional de Prevenção e Apoio à Saída do Sistema de Prostituição, assente em 5 eixos principais: prevenção, apoios e serviços, conscientização, responsabilização, valorização e capacitação.
A prevenção passa por agir no sentido da mudança de mentalidades em matéria da sexualidade e de igualdade entre mulheres e homens.
Ao nível da conscientização, orientada para a desconstrução de estereótipos e preconceitos em torno da sexualidade e da própria prostituição, destacam-se, entre as medidas apresentadas, ações e campanhas que consciencializem acerca da compra de sexo, nomeadamente, campanhas dirigidas aos homens, campanhas que promovam uma sexualidade livre, particularmente dirigidas a jovens, e que desconstruam a validação social da pornografia.
Em termos de apoios e serviços, as medidas visam criar, incrementar ou melhorar estruturas de apoio e serviços de resposta específica às mulheres em situação de prostituição e sexualmente exploradas. A criação de uma linha telefónica permanente de apoio, a criação de equipas especializadas nas forças policiais e de segurança, o estreitamento de parcerias entre instituições sociais e autarquias, o desenvolvimento de parcerias e protocolos com o sector privado, para criação de emprego protegido para mulheres que pretendem sair do sistema de prostituição, são algumas das medidas propostas.
No eixo da responsabilização, as propostas vão para a mudança da lei, nomeadamente desincentivando a procura, e também de medidas que tornem mais ágil e eficaz a implementação da legislação existente.
Em termos de valorização e capacitação, as medidas orientam-se para o apoio à saída do sistema de prostituição, assente no trabalho, respeitando a singularidade das trajetórias de vida de cada mulher e as suas condições emocionais. Destacam-se aqui as medidas de apoio à saúde, a atribuição de um subsídio de emergência e temporário, durante a fase inicial de um projeto de inserção, a integração no mercado de trabalho, através da rede de centros de emprego e ainda acompanhamento psicossocial, individualizado e continuado, que favoreça a reflexividade, a autoconfiança e a consolidação do processo de mudança.
O caminho da defesa dos direitos humanos das mulheres no sistema de prostituição tem sido longo e tortuoso. Nas Nações Unidas há o reconhecimento de que a prostituição é uma forma de violência contra as mulheres expresso em várias convenções, nomeadamente na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (artigo 6º). Ainda recentemente, em março deste ano, no documento político adotado na 68ª sessão da Comissão sobre o Estatuto das Mulheres, centrada na redução da pobreza entre as mulheres, é estabelecida uma relação clara entre a pobreza e todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo a exploração sexual. Uma das medidas consensualizadas: desencorajar, com vista a eliminar, a procura que fomenta todas as formas de exploração, incluindo a exploração sexual.
Também recentemente, em setembro de 2023, o Parlamento Europeu adotou o relatório de iniciativa sobre a regulamentação da prostituição na UE: as suas implicações transfronteiriças e o seu impacto na igualdade de género e nos direitos das mulheres, elaborado pela eurodeputada do S&D Maria Noichl. As e os eurodeputados deixaram claro que a prostituição é uma forma de violência e que a implementação de programas de apoio e saída para as sobreviventes é a melhor forma de a combater. Este é um marco para as mulheres na Europa, uma vez que representam 90% das pessoas na prostituição e 87% das vítimas de tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual.
Este relatório incentiva os Estados-Membros a adotarem uma perspetiva abolicionista que descriminalize as pessoas que se prostituem e salienta os efeitos negativos da descriminalização dos chamados “compradores de sexo” e de terceiros exploradores.
Ao abordar as causas profundas da prostituição, o relatório insiste particularmente na importância de garantir apoio de saúde, social, educativo e económico às pessoas em situação de prostituição, uma vez que a pobreza e a exclusão social estão na base desta forma de exploração sexual.
A abordagem abolicionista do sistema de prostituição – aquela que a Plataforma defende – tem como objetivo garantir às pessoas sobreviventes da prostituição instrumentos que lhes permitam recuperar o seu poder, a sua capacidade de ação e a sua autonomia, mas também coloca o ónus da estigmatização e da vergonha nos chamados “compradores de sexo”, que acreditam que o consentimento pode ser comprado.
Sabemos de que a prostituição não é uma escolha individual que se toma num contexto de sexualidade livre e empoderadora. É antes parte de um sistema onde a violência e a exploração (de todos os tipos) são exacerbadas. É um sistema sexista, classista, racista, xenófobo!
Está na hora de Portugal avançar e deixar de ser um país semi-abolicionista para passar a ser um país onde o modelo da igualdade se desenvolva e onde nenhuma mulher ou rapariga é deixada para trás.
Fonte: Comentário apresentado no âmbito do Coina Simposium – Da História à Medicina: Uma realidade que importa DIVULGAR E DEBATER