A Perspetiva de Género na Agenda Climática Global: a participação da PpDM na COP29
Entre os dias 19 e 23 de novembro, a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) marcou presença na 29.ª Conferência das Partes (COP29) da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC), integrando a Delegação do Governo Português. Esta COP, apelidada de “Finance COP”, teve como prioridade a definição de uma Nova Meta Quantificada Coletiva de Financiamento Climático, fundamental para apoiar os países mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas.
Neste sentido, a PpDM acompanhou de perto as negociações do documento “género e alterações climáticas”, negociado durante as duas semanas da Conferência.
Este documento é uma peça central para a integração da perspetiva de género nas políticas climáticas globais e reforça a necessidade de incluir mulheres nos processos de decisão, assegurando uma transição climática mais justa e eficaz. Durante a COP29, apesar de resistência, este documento foi vital para garantir compromissos de financiamento e integração da perspetiva de género nas políticas climáticas, um tema de crescente relevância no panorama climático global.
O documento destaca, em particular, a importância de reconhecer a ligação intrínseca entre as desigualdades entre mulheres e homens e os impactos das alterações climáticas. Este nexus mulheres e clima sublinha que, para que a ação climática seja eficaz e inclusiva, é essencial compreender as especificidades de como as mulheres são afetadas e como podem contribuir para soluções transformadoras.
O que é o nexus mulheres e clima?
O conceito de nexus mulheres-clima refere-se à interseção entre as desigualdades entre mulheres e homens e os impactos das alterações climáticas. Reconhece-se que as mulheres, especialmente em comunidades vulneráveis, são desproporcionalmente afetadas pelas crises ambientais devido a barreiras estruturais como acesso desigual a recursos, menor participação em processos de decisão e vulnerabilidades acrescidas em contextos de pobreza.
Paralelamente, as mulheres são agentes indispensáveis de mudança, desempenhando um papel essencial no desenvolvimento de soluções sustentáveis e inovadoras. No entanto, as suas contribuições continuam sub-representadas nas estratégias de mitigação e adaptação climática, bem como no acesso aos financiamentos climáticos globais.
As diretrizes da Recomendação Geral n.º 37 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) são claras quanto à necessidade de incluir as mulheres nas políticas e decisões climáticas. Esta recomendação estabelece que os Estados têm a obrigação de:
– Garantir o acesso equitativo das mulheres aos recursos climáticos e financeiros;
– Promover a participação plena e igualitária das mulheres em todos os níveis de tomada de decisão sobre o clima;
– Prevenir a discriminação com base no sexo no que diz respeito aos esforços de adaptação e mitigação climática.
Por sua vez, a Plataforma de Ação de Pequim (Área K), uma referência histórica em matéria de igualdade entre mulheres e homens, destaca a interligação entre a capacitação das mulheres e a sustentabilidade ambiental. No seu eixo específico sobre Mulheres e Meio Ambiente, sublinha-se:
– A importância de reforçar o papel das mulheres na gestão ambiental e nos processos de desenvolvimento sustentável;
– A necessidade de integrar as questões de género nos programas e políticas ambientais, reconhecendo as mulheres como principais utilizadoras e guardiãs dos recursos naturais;
– O imperativo de assegurar que as políticas ambientais abordem as desigualdades existentes entre mulheres e homens.
Estas orientações fornecem um quadro robusto para defender o nexus mulheres-clima como uma prioridade transversal nas negociações climáticas e no financiamento global.
Financiamento Climático e o Nexus Mulheres e Clima
A Nova Meta Quantificada Coletiva de Financiamento Climático surge como uma oportunidade estratégica para corrigir assimetrias históricas, incluindo aquelas relacionadas com o sexo. Os mecanismos de financiamento não devem ser apenas direcionados para projetos globais de mitigação, mas também para iniciativas que promovam a justiça climática com um foco claro nas necessidades e capacidades das mulheres e raparigas.
O nexus mulheres-clima, neste contexto, sublinha que o financiamento climático deve integrar a perspetiva de género (gender mainstreaming), alocando recursos para projetos liderados por mulheres e raparigas, capacitação de comunidades locais e o fortalecimento de redes femininas em áreas como a agricultura sustentável, gestão de recursos hídricos e energias renováveis.
A Revisão do Plano de Ação de Lima na COP29
Deste modo, o Plano de Ação de Lima sobre Género, adotado na COP20 em 2014, é uma ferramenta essencial para integrar a igualdade entre mulheres e homens nas políticas climáticas globais. O Plano articula cinco áreas principais: capacitação e comunicação para promover a liderança das mulheres e garantir soluções climáticas inclusivas; participação plena e significativa das mulheres nos processos de decisão da política climática; coerência nas ações com perspetiva de género em toda a governança climática; implementação de medidas sensíveis ao género para enfrentar as desigualdades estruturais entre mulheres e homens; e monitorização para avaliar e aprimorar as políticas. Este plano é uma base viva e flexível, que visa fortalecer o papel das mulheres na construção de soluções climáticas inovadoras e resilientes, e cuja revisão estava prevista para esta COP29.
Assim, as organizações da sociedade civil feminista fizeram um esforço incansável para garantir um Programa de Trabalho de Lima sobre Género robusto, superando a significativa resistência de alguns países que tentaram excluir a igualdade entre mulheres e homens e os direitos humanos das mulheres e raparigas da agenda das negociações. Embora a presidência desta cimeira não tenha dado a devida prioridade a estas questões, o trabalho coletivo levou à obtenção de um compromisso crucial para os próximos 10 anos, que deverá resultar na adoção de um novo Plano de Ação sobre Género na COP30, no Brasil.
Embora este marco reflita a nossa persistência, continuamos profundamente preocupadas com a insuficiência de integração das questões que afetam mulheres e raparigas nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs – Nationally Determined Contributions). Sem um financiamento público adequado e eficaz, a promessa de uma ação climática justa para as mulheres corre o risco de permanecer uma declaração vazia, em vez de se traduzir numa realidade verdadeiramente transformadora.
De facto, a COP29 falhou em dar a devida prioridade à integração da perspetiva de género em todas as áreas da política climática. As negociações enfrentaram constantes bloqueios contra qualquer medida que fortalecesse o Programa de Trabalho de Lima sobre Género, resultando num acordo fraco, que não inclui a dimensão da violência masculina ou a defesa intransigente dos direitos humanos. Mulheres em todo o mundo, especialmente aquelas na linha da frente da defesa dos direitos ambientais, enfrentam ameaças únicas ao desafiar a exploração de recursos naturais e combater a discriminação estrutural com base no sexo. A decisão final não aproveitou a oportunidade de garantir proteção integral para as defensoras dos direitos humanos ambientais, o que enfraquece ainda mais a efetivação de uma ação climática justa e eficaz.
No plano mais amplo, a COP29 ficará marcada como um evento controverso, onde as fragilidades das negociações climáticas foram evidentes. O acordo de financiamento alcançado – um compromisso de 300 mil milhões de dólares anuais até 2035 – foi amplamente criticado por ser insuficiente face às necessidades reais para combater a crise climática, sendo descrito como uma “ilusão de ótica” ou uma “piada cruel”. Enquanto isso, o número recorde de lobistas da indústria fóssil (1773) ultrapassou o total de delegadas e delegados dos países mais vulneráveis, revelando o poder desproporcional deste setor. Num cenário de urgência climática, com tempestades a assolar países como as Filipinas, os subsídios aos combustíveis fósseis continuaram a crescer, atingindo um recorde de 1,7 biliões de dólares em 2022, enquanto os países mais ricos mantiveram o discurso da escassez financeira.
Apesar do clima de desalento, a COP29 também destacou as prioridades para a próxima cimeira, a COP30, que terá lugar no Brasil. As atenções estão voltadas para a necessidade urgente de acelerar uma transição energética justa, eliminando progressivamente os combustíveis fósseis e garantindo o acesso equitativo à energia limpa. A integração da natureza e dos sistemas alimentares será outro ponto central, com foco na proteção dos ecossistemas, no combate ao desmatamento e na promoção da agricultura sustentável. Com uma sociedade civil mobilizada e pronta a ocupar as ruas, espera-se que a COP30 amplifique as vozes das mulheres e das raparigas, dos povos indígenas, dos Pequenos Estados Insulares e das comunidades do Sul Global, reafirmando a solidariedade climática e feminista e a urgência de soluções justas e efetivas para o planeta.
Participação ativa
Para além do seguimento das negociações, a PpDM colaborou como co-organizadora, no Ciclo de Eventos “Mulheres pelo Clima”, promovido pela organização-membro da PpDM, a Business as Nature (BasN), que incluiu quatro iniciativas no Pavilhão de Portugal, na Blue Zone da COP29.
O primeiro evento, “Mulheres pela Água: Da Eficiência à Adaptação”, realizado a 19 de novembro, o dia da Água, focou o papel das mulheres nos países de língua portuguesa na gestão e preservação da água, destacando a importância da adaptação às mudanças climáticas.
No dia 20, dia dedicado à urbanização, transporte e turismo, foi promovido o encontro “Rede de Cidades Pink Circle: Ação Climática Local”, que explorou a criação de oportunidades para o empreendedorismo feminino no setor da economia circular e de baixo carbono, através da partilha de boas práticas de municípios.
A tarde do dia 20 foi marcada pela dinamização de um “roteiro” conduzido pelas Jovens Embaixadoras da Sustentabilidade, um grupo de jovens participantes no programa educacional na área do ambiente, sustentabilidade e igualdade entre mulheres e homens promovido pela BasN. Durante esta iniciativa, e em colaboração com a PpDM, as jovens percorreram os pavilhões dos países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), recolhendo exemplos de boas práticas em sustentabilidade. Este roteiro teve como objetivo preparar as jovens para o evento realizado no Dia da Igualdade entre mulheres e homens da COP, onde apresentaram os resultados obtidos, destacando as iniciativas mais relevantes identificadas.
Chegando ao Dia da Igualdade entre mulheres e homens, 21 de novembro, foram promovidas duas iniciativas: a primeira, “Clima: A Perspetiva de Género nas Políticas Ambientais e Envolvimento das Mulheres e das Raparigas”, sobre a integração da perspetiva de género nas políticas ambientais, com a participação das delegadas da PpDM no painel sobre as iniciativas nos Pavilhões da CPLP; e à tarde, o evento “Mulheres pelo Clima: Reforçar a Ambição e Amplificar o Impacto da Ação” que promoveu uma Coligação Global focada no Nexus Clima & Género e reforçou a presença do movimento Mulheres pelo Clima na agenda política da COP29.
Todos os eventos estão disponíveis online, aqui, permitindo uma disseminação global e a ampliação do debate sobre o papel essencial das mulheres na construção de soluções climáticas duradouras e eficazes.
Além das iniciativas promovidas no âmbito do Ciclo de Eventos “Mulheres pelo Clima”, a delegação da PpDM participou ao longo dos dias em sessões plenárias, inclusivé a sessão sobre Ação Climática Multinível e Multissetorial e sessões de diálogo ministeriais, em particular a sessão sobre a necessidade urgente de aumentar o financiamento para a adaptação climática.
A PpDM esteve também presente nas reuniões de coordenação diárias “Mulheres e Género” onde, todas as manhãs, era feito um ponto de situação em relação às negociações do documento “género e alterações climáticas”.
Não obstante, as delegadas da PpDM participaram em eventos focados na promoção do nexus mulheres-clima e nos direitos humanos das mulheres e raparigas promovidos por outras organizações da sociedade civil:
- “Clima, Género e Saúde: Elementos Essenciais para Comunidades Resilientes” organizado pela Women Deliver
- Lançamento do “Global Brief”sobre Clima e Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva
- “Género e Clima: Sinergias e desafios”, organizado pela ONU Mulheres
- “Acelerar soluções feministas para a crise climática”, organizado pela WECAN (Women’s Earth and Climate Action Network)
A participação da PpDM pela primeira vez numa COP representa um marco significativo no esforço da organização para promover políticas climáticas eficazes e equitativas, onde a igualdade entre mulheres e homens seja uma componente central na luta contra as alterações climáticas. Este passo insere-se num compromisso contínuo de reforçar a presença das mulheres, e das organizações de mulheres, nos espaços de decisão climática e de integrar uma perspetiva de género nas políticas globais.
Contudo, esta experiência revelou uma lacuna preocupante: a relação “mulheres e clima” era frequentemente desassociada das negociações climáticas. Esta visão fragmentada ignora uma verdade fundamental: não haverá justiça climática sem a plena inclusão das mulheres e sem políticas climáticas que integrem uma perspetiva de género.
As alterações climáticas não afetam todas as pessoas de forma igual, e as mulheres, voltemos a repetir, enfrentam desafios acrescidos devido às desigualdades estruturais que limitam o seu acesso a recursos, poder de decisão e oportunidades de adaptação. Ignorar estas realidades é perpetuar injustiças e comprometer a eficácia das soluções climáticas.
Por outro lado, as mulheres são agentes cruciais de mudança. A sua liderança em iniciativas comunitárias, gestão de recursos naturais e desenvolvimento de soluções sustentáveis demonstra o potencial transformador da sua participação ativa. Contudo, este contributo é frequentemente invisibilizado nas políticas e mecanismos de financiamento climático.
É, por isso, imperativo que decisoras e decisores de política compreendam que as questões relacionadas com os direitos humanos das mulheres e raparigas não são apêndices nas discussões climáticas. Pelo contrário, são parte integrante de qualquer estratégia que aspire a ser verdadeiramente eficaz. O nexus mulheres e clima deve ser reconhecido como uma prioridade transversal, tanto nas negociações internacionais como no debate público, para assegurar que as políticas climáticas não perpetuam desigualdades, mas sim as combatem.
A luta por uma transição climática justa exige um esforço concertado para trazer as mulheres para o centro das soluções, garantir o seu acesso equitativo a recursos financeiros e integrá-las em todas as fases da tomada de decisão. Só assim será possível construir um futuro sustentável e inclusivo, onde a justiça climática seja uma realidade para todas e todos. A PpDM continuará certamente a fazer por isso.