Lei Laboral em revisão: O risco de retrocessos na igualdade entre mulheres e homens

A proposta de alteração do Código do Trabalho, apresentada pelo Governo em julho, poderá ter implicações significativas na promoção e realização da igualdade entre mulheres e homens. Entre as medidas previstas, destacam-se restrições ao período de dispensa para amamentação e a descriminalização do trabalho não declarado – mudanças que representam uma redução da proteção laboral, com impacto particular sobre as mulheres.

Acresce que estas alterações são especialmente preocupantes no quadro dos compromissos internacionais assumidos por Portugal, nomeadamente a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Plataforma de Ação de Pequim. Embora com diferente força legal – a CEDAW é uma convenção das Nações Unidas que vigora na nossa ordem jurídica interna e tem, portanto, força de lei – ambos os instrumentos impõem obrigações claras aos Estados para garantir a igualdade entre mulheres e homens e promover os direitos das mulheres, pelo que qualquer retrocesso legislativo tem que ser analisado à luz dessas responsabilidades.

A presente análise examina, tema a tema, as alterações propostas, confrontando-as com as obrigações assumidas por Portugal no âmbito destes instrumentos internacionais.

 

Amamentação

O anteprojeto de alteração ao Código do Trabalho introduz várias mudanças significativas ao regime de dispensa para amamentação e aleitação previsto no artigo 47.º.

Em primeiro lugar, altera-se a duração do direito. Atualmente, a lei garante à mãe que amamenta dispensa de trabalho “durante o tempo que durar a amamentação”, em conformidade com as recomendações da Organização Mundial de Saúde, que recomenda a amamentação exclusiva até aos 6 meses de vida, e complementar até aos dois anos ou mais. A proposta governamental contraria este enquadramento, ao limitar o direito até a criança completar dois anos, reduzindo assim a proteção em situações em que a amamentação se prolonga para além dessa idade.

Em segundo lugar, a redação atual do artigo permite que qualquer um dos progenitores, ou ambos, mediante decisão conjunta, usufruam da dispensa para aleitação até a filha/o completar um ano. O anteprojeto elimina esta referência à decisão conjunta, passando a indicar apenas que qualquer um dos progenitores pode exercer o direito. Esta alteração pode restringir, na prática, a possibilidade de partilha, enfraquecendo a promoção da igualdade parental e da co-responsabilidade nos cuidados. Tal medida contraria o espírito do artigo 5.º da CEDAW, que recomenda aos Estados assegurar o entendimento da maternidade como função social e reconhecer a responsabilidade comum de homens e mulheres na educação e desenvolvimento das filhas/os.

Por fim, altera-se o procedimento para comprovação médica. Enquanto atualmente o artigo 48.º exige atestado médico apenas quando a dispensa se prolonga para além do primeiro ano, a proposta passa a exigir atestado desde o início e com renovação semestral. Esta exigência aumenta a burocracia e impõe encargos adicionais às mães, funcionando como uma barreira ao exercício do direito. A Plataforma de Ação de Pequim, instrumento mais abrangente das Nações Unidas no domínio dos direitos das mulheres, recomenda precisamente o contrário, ao prever medidas para aumentar o acesso das mulheres, ao longo do seu ciclo de vida, a cuidados de saúde adequados e acessíveis, incluindo apoio legal, económico, prático e emocional que lhes permita amamentar em condições dignas.

 

Trabalho flexível

O artigo 56.º do Código do Trabalho garante atualmente que as pessoas trabalhadoras com filhas/os menores de 12 anos, ou com filhas/os de qualquer idade com deficiência ou doença crónica, tenham direito a um horário flexível. Este direito pode ser exercido por qualquer um dos progenitores, ou por ambos, sendo o horário organizado pela entidade empregadora de acordo com critérios gerais definidos na lei.

A proposta de alteração introduz, contudo, uma nova alínea que redefine este regime. Passa a estabelecer que o horário flexível deve ajustar-se às formas específicas de organização do tempo de trabalho que decorram do período de funcionamento da empresa ou da natureza das funções desempenhadas, incluindo situações de trabalho noturno ou habitual ao fim de semana e em feriados.

Esta mudança desloca o centro da proteção: deixa de estar na pessoa trabalhadora e nas suas responsabilidades familiares, para se subordinar às necessidades da empresa. Tal solução contraria os compromissos internacionais assumidos por Portugal. O artigo 11.º da CEDAW obriga os Estados a promover condições laborais que permitam aos pais conciliar trabalho e cuidados parentais, incluindo a disponibilização de serviços de apoio infantil. Também a Plataforma de Ação de Pequim, no seu objetivo estratégico F.6, recomenda políticas que harmonizem as responsabilidades familiares com o emprego, promovam a partilha das tarefas de cuidado entre mulheres e homens e facilitem a amamentação no local de trabalho.

 

Licença parental

Atualmente, a licença parental inicial é de 120 dias pagos a 100%, podendo ser acrescida de 30 dias adicionais também pagos a 100%, desde que cada progenitor usufrua desse período de forma exclusiva – 30 dias consecutivos ou dois períodos de 15 dias consecutivos após os 42 dias obrigatórios da mãe. Caso essa exclusividade não se verifique, o acréscimo é pago a 80%. Este modelo procura incentivar uma partilha efetiva, assegurando que ambos os progenitores tenham tempo a sós com o bebé, reforçando a ligação e promovendo a equidade parental.

Na proposta de lei, mantém-se a licença inicial de 120 dias, mas prevê-se a possibilidade de acréscimo de 60 dias, totalizando 180. Esses 60 dias adicionais devem ser gozados de forma partilhada, em períodos iguais para ambos os progenitores, mas não necessariamente em regime exclusivo. Assim, mãe e pai podem estar simultaneamente de licença, o que enfraquece a garantia de que cada um assuma sozinho as responsabilidades de cuidado.

Ao permitir que a totalidade do período adicional seja gozada em simultâneo, a proposta dilui o incentivo para que cada progenitor assuma, de forma autónoma, parte significativa dos cuidados. Esta opção entra em contradição com as obrigações internacionais assumidas por Portugal. Na sua mais recente avaliação periódica (2022), o Comité CEDAW recomendou ao Estado a adoção de medidas para reduzir o fosso salarial entre mulheres e homens, incluindo o incentivo à partilha equitativa das responsabilidades domésticas e de cuidado, através do alargamento da licença de paternidade e da promoção do tempo exclusivo de cuidado por cada progenitor. Também a Plataforma de Ação de Pequim, no objetivo estratégico F.6, sublinha a importância de criar regimes de licença parental partilhada e remunerada que promovam a corresponsabilidade e combatam estereótipos.

 

Luto gestacional

Atualmente, a lei garante aos trabalhadores três dias de falta justificada e remunerada em caso de luto gestacional, abrangendo ambos os progenitores. A proposta do Governo revoga este direito específico, remetendo a perda gestacional para o regime geral da licença por interrupção da gravidez (artigo 38.º), que abrange tanto situações voluntárias como involuntárias. Neste novo enquadramento, a mãe poderá beneficiar do período previsto neste regime, que varia entre 14 e 30 dias, mas o pai perde totalmente o direito a faltas remuneradas para acompanhar a mãe. Fica apenas com a possibilidade de recorrer à licença para assistência a membro do agregado familiar (artigo 252.º), sem remuneração garantida.

A eliminação deste direito específico enfraquece a proteção dos progenitores num momento de elevada vulnerabilidade física e emocional. Tal alteração contraria os princípios da Plataforma de Ação de Pequim, que sublinham a importância de assegurar às mulheres condições adequadas de saúde e apoio durante a maternidade, bem como medidas que envolvam os homens na partilha de responsabilidades familiares.

 

Trabalho não declarado

A Lei n.º 7/2009, com a redação dada pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, introduziu o artigo 106.º-A, que estabelece sanções para as entidades empregadoras que não comuniquem à Segurança Social a admissão de trabalhadores dentro do prazo legal, penalizando a omissão até seis meses após esse prazo. Este mecanismo foi criado para combater o trabalho não declarado, responsabilizando diretamente as entidades empregadoras pelo incumprimento e atrasos na inscrição dos seus trabalhadores.

O anteprojeto atual propõe revogar integralmente o artigo 106.º-A, eliminando esta penalização específica. Esta revogação pode enfraquecer os mecanismos legais de combate ao trabalho não declarado, retirando um importante instrumento de controlo.  O trabalho doméstico é muitas vezes prestado de forma informal, sem contrato ou registo oficial, afetando sobretudo mulheres. A falta de proteção legal nestes casos implica a ausência de direitos laborais básicos, a impossibilidade de aceder a contribuições para a segurança social e eleva o risco de precarização económica e social. Além disso, a combinação de cortes em direitos de amamentação, licenças parentais e horários flexíveis empurra mulheres para um acréscimo de responsabilidades familiares não remuneradas, reforçando desigualdades entre mulheres e homens no trabalho doméstico e cuidados.

A Plataforma de Ação de Pequim, nas suas iniciativas e ações futuras para implementação, sublinha a importância de garantir proteção social adequada, redes de apoio às famílias e igualdade no acesso e controlo dos recursos económicos. Estes elementos são fundamentais para promover a igualdade entre mulheres e homens e o empoderamento das mulheres. O trabalho não declarado, que afeta desproporcionalmente as mulheres, fragiliza o acesso a estas condições básicas, privando muitas trabalhadoras de direitos laborais, proteção social e segurança económica. A revogação das sanções específicas contra o trabalho não declarado enfraquece os mecanismos de proteção e contraria os compromissos internacionais de Portugal, dificultando a eliminação das desigualdades entre mulheres e homens no mercado de trabalho.

 

Despedimento ilícito 

A lei atual prevê a reintegração como consequência regra em caso de despedimento ilícito, assegurando à pessoa trabalhadora o regresso ao posto de trabalho e o pagamento das retribuições perdidas. Apenas em situações restritas – a pedido do próprio trabalhador, ou, no caso da entidade empregadora, quando se trate de microempresa ou cargo de direção e o regresso seja gravemente prejudicial, pode esta ser substituída por indemnização. A proposta de alteração ao Código do Trabalho vem, no entanto, alargar o leque de situações em que a entidade empregadora pode opor-se à reintegração, permitindo que a indemnização se torne solução mais frequente. Passa a prever-se, de forma genérica, que qualquer entidade empregadora  pode pedir ao tribunal que exclua a reintegração, bastando invocar que o regresso da pessoa trabalhadora seria “gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa”. 

Este enfraquecimento do direito à reintegração terá impactos significativos para as mulheres, que continuam a ser alvo preferencial de despedimentos abusivos ligados à gravidez, à maternidade e cuidados familiares. Ao abrir a porta a práticas em que a entidade empregadora se limita a pagar uma compensação para afastar trabalhadoras consideradas “menos convenientes”, a proposta agrava o risco de exclusão feminina do mercado de trabalho, empurrando muitas mulheres para o trabalho doméstico e de cuidado não remunerado. 

 

Conclusão:

A análise das alterações propostas ao Código do Trabalho evidencia um retrocesso preocupante na proteção das trabalhadoras e na promoção da igualdade entre mulheres e homens. As mudanças relativas à amamentação, ao trabalho flexível, à licença parental e ao luto gestacional reduzem direitos específicos que asseguravam corresponsabilidade parental, proteção da saúde materna e equilíbrio entre vida profissional e familiar. A revogação das sanções contra o trabalho não declarado fragiliza ainda mais a proteção laboral, afetando desproporcionalmente as mulheres e dificultando o acesso a direitos económicos e sociais básicos e consequentemente a sua autodeterminação.

Estas alterações, para aém de não promoverem a igualdade entre mulheres e homens – art. 9º da CRP – entram em tensão com outras disposições constitucionais já mencionadas e com os compromissos internacionais assumidos por Portugal, nomeadamente a CEDAW e a Plataforma de Ação de Pequim, que destacam a necessidade de garantir igualdade de oportunidades, corresponsabilidade no cuidado familiar e acesso equitativo a recursos económicos. A implementação das propostas, tal como se encontram, pode aumentar desigualdades entre mulheres e homens, enfraquecer direitos fundamentais e limitar o avanço rumo a um mercado de trabalho mais justo e inclusivo.

A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres considera urgente que o Estado reveja estas medidas, reforçando a proteção das mulheres, promovendo a igualdade efetiva entre progenitores e garantindo condições laborais compatíveis com a Constituição da República e com os compromissos internacionais de Portugal.

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