Diálogo de Lisboa: Direitos das Mulheres e Paz 25 anos após a Resolução 1325

A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM) acolheu, no Centro Maria Alzira Lemos – Casa das Associações, um encontro organizado pela Embaixada da República do Kosovo em Portugal, dedicado ao 25.º aniversário da Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, documento fundador da agenda “Mulheres, Paz e Segurança”. O evento reuniu organizações de mulheres e diplomatas, com destaque para a participação de representantes do Kosovo, país cuja sociedade civil tem desempenhado um papel determinante na construção da paz.


Esta sessão iniciou-se com as palavras de boas-vindas da Presidente da PpDM, Paula Barros, que recordou a Resolução 1325 como um marco: adotada em 31 de outubro de 2000, reconheceu formalmente, e pela primeira vez, a importância da participação das mulheres em todos os níveis dos processos de paz – desde a prevenção, negociação até à reconstrução pós-conflito.

A Presidente da PpDM sublinhou os principais avanços e desafios na implementação da 1325, destacando o trabalho desenvolvido no âmbito dos Planos de Ação Nacionais para Mulheres, Paz e Segurança, nomeadamente o IV Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança, ao qual a PpDM apresentou contributos significativos em 2025. Entre estes contributos, referiu:

  1. O reconhecimento do papel das mulheres como cuidadoras, líderes comunitárias e agentes centrais de resiliência e coesão social, especialmente em contextos de crise, deslocação forçada ou emergência humanitária;
  2. A saúde, a violência sexual e a proteção digital, incluindo propostas que abrangem campanhas de saúde pública, prevenção das IST e da violência sexual, combate ao tráfico e à exploração em contextos de conflito, bem como estratégias de proteção de crianças e jovens contra conteúdos violentos e pornográficos online.

Para além destas áreas, foram ainda destacadas um conjunto de medidas estratégicas, essenciais para garantir uma implementação robusta do Plano:

  • Compromisso político firme para assegurar a participação paritária das mulheres em todos os processos de tomada de decisão.
  • Defesa dos direitos sexuais e reprodutivos como dimensão incontornável da agenda Mulheres, Paz e Segurança.
  • Financiamento sustentável e independente para associações de mulheres, reconhecendo o seu papel insubstituível na promoção da paz e da igualdade.
  • Monitorização e avaliação anual da implementação do Plano, com participação ativa das associações de mulheres, garantindo transparência, continuidade e eficácia.

Paula Barros concluiu afirmando que “não há paz sem a participação das mulheres”, sublinhando que a igualdade entre mulheres e homens é uma pré-condição para a paz sustentável. 

Seguiu-se a intervenção da Embaixadora da República do Kosovo em Portugal, Edona Maloku Bërdyna, com uma apresentação que evocou o percurso histórico das mulheres kosovares. Para muitas pessoas na República do Kosovo, o aniversário dos 25 anos da 1325 é particularmente simbólico: no final da década de 1990, o Kosovo emergia de um conflito armado, e esta Resolução chegou justamente quando o país entrava num processo de reconstrução política, social e institucional. Nesse mesmo ano foi estabelecida a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK), ao abrigo da Resolução 1244 do Conselho de Segurança, com o objetivo de administrar o território e apoiar o desenvolvimento de instituições democráticas.

Contudo, já durante e no pós conflito, a sociedade civil estabeleceu-se como protagonista: muitas organizações de mulheres, redes de mulheres e lideranças locais lutaram para que a voz das mulheres fosse ouvida nos processos de paz. A Kosovo Women’s Network (KWN), uma plataforma de organizações que hoje inclui quase 200 organizações, foi fundada nesse contexto, defendendo a participação política das mulheres, justiça para sobreviventes de violência e reparações.

Neste contexto, a Embaixadora destacou o contributo de Igballe Rogova, figura de referência do movimento de mulheres no Kosovo e fundadora da Kosovo Women’s Network (KWN), bem como o trabalho de Nicole Farnsworth, subdiretora e Investigadora Principal da KWN.

A representante diplomática do Kosovo em Portugal também chamou atenção para a importância de partilhar a experiência kosovar com Portugal: o diálogo entre as organizações civis de ambos os países cria espaço para uma diplomacia feminista e para a construção de alianças transnacionais em torno da paz inclusiva. Neste contexto, sublinhou a importância de se discutir a Resolução 1325 no ano do seu aniversário, reforçando a sua importância, reavivando a memória e afirmando que este documento veio formalizar aquilo que, para quem viveu a guerra, já era evidente: a centralidade das mulheres e da sociedade civil na transição do conflito para a paz.

 

Igballe Rogova: a memória e a força da sociedade civil

Igballe Rogova, figura central no movimento de mulheres no Kosovo, começou a sua intervenção alertando para a tendência, ainda comum, de se falar da 1325 apenas em termos de representação formal e numérica das mulheres, ignorando o papel fundamental da sociedade civil: “quem está por detrás do trabalho transformador”.

A oradora evocou episódios da década de 1990, quando mulheres kosovares e sérvias, apesar da violência e da divisão étnica, mantiveram contactos, partilharam estratégias e colaboraram na defesa das suas comunidades. Relatou ainda a frustração perante a abordagem “top-down” de algumas instituições internacionais, incluindo da UNMIK, cujos especialistas assumiram que as mulheres kosovares estavam ausentes dos processos de tomada de decisão, acabando por as afastar dos espaços onde já atuavam e lideravam.

Igballe Rogova criticou a abordagem “top-down” de algumas missões internacionais, nomeadamente da Missão das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK), estabelecida em 1999 pelo Regime da Resolução 1244 para administrar o território. Sublinhou que, no período inicial da missão, prevaleceu entre vários responsáveis internacionais a perceção errada de que as mulheres kosovares não participavam nos processos de tomada de decisão, o que levou à sua sistemática exclusão dos espaços formais de governação. Esta postura contrastava profundamente com o trabalho já desenvolvido pelas mulheres no terreno.

Recordou também que, durante um encontro com Kofi Annan, em 1999, o então Secretário-Geral da ONU reconheceu a urgência de incluir mulheres nas negociações de paz, observando que eram elas quem melhor compreendia as questões centrais enfrentadas pela população, especialmente no que tocava à proteção, à sobrevivência quotidiana e ao impacto do conflito sobre as famílias.

Foi neste contexto que nasceu a Women’s Peace Coalition, uma coligação entre a KWN e a organização sérvia Women in Black, conhecida pelo seu ativismo pacifista em Belgrado. Esta coligação procurou apresentar uma alternativa às negociações formais, promovendo encontros conjuntos entre mulheres dos dois lados do conflito, incluindo uma reunião histórica na Macedónia.

 

Nicole Farnsworth: investigação, redes e financiamento para a igualdade

Por sua vez, Nicole Farnsworth aprofundou o trabalho desenvolvido pela KWN e pelas redes internacionais com quem colaboram. Reforçou a ideia de que “só juntas somos mais fortes”, sublinhando que as organizações da sociedade civil têm maior capacidade de influência quando atuam em coligação.

Apresentou ainda uma análise produzida pela KWN sobre a implementação da agenda Mulheres, Paz e Segurança no Kosovo, destacando tendências de subfinanciamento e despriorização política. Este documento pretende orientar futuros programas e políticas, especialmente da União Europeia, para que a sua ação no Kosovo seja de facto sensível ao género, sustentável e alinhada com os compromissos da agenda “Mulheres, Paz e Segurança”.

Explicou ainda o papel do Gender Budget Watchdog Network, rede que monitoriza os orçamentos da União Europeia, sobretudo no que diz respeito ao Quadro Financeiro Plurianual. Neste contexto, a oradora alertou para o desvio crescente de fundos das áreas sociais para agendas de segurança e militarização, questionando: “Segurança para quem?”

Esta pergunta tem vindo a tornar-se cada vez mais legítima, levando a sociedade a refletir sobre o chamado “dilema de segurança”, segundo o qual as medidas tomadas por um Estado ou ator internacional para reforçar a sua própria segurança (por exemplo, aumentar capacidades militares ou investir em tecnologias de defesa) podem, paradoxalmente, gerar maior insegurança no sistema. Ao intensificar a militarização, outros atores sentem-se ameaçados, respondem de igual forma e cria-se um ciclo de escalada, desconfiança e tensão. Assim, ações destinadas a aumentar a segurança acabam por enfraquecê-la para todas as pessoas, tornando a situação final mais instável e perigosa do que a inicial.

Nicole Farnsworth sublinhou também que instrumentos como o Plano Europeu para a Paz e Segurança ou o Plano de Ação da UE para a Igualdade de Género (GAP III) requerem financiamento estável e suficiente; sem este, tornam-se compromissos vazios e, acima de tudo, este financiamento não pode ser sacrificado em nome de prioridades militarizadas. 

Segundo a análise de Farnsworth e Rogova, apesar de a UE assumir a Resolução 1325 como referência normativa, existe uma desconexão evidente entre o discurso e a prática, em particular no que diz respeito à alocação de recursos e ao envolvimento das mulheres nos processos de mediação.

 

Reconhecimento da violência sexual como arma de guerra

Um dos pontos mais contundentes, e sobre o qual ambas as oradoras se debruçaram, foi a trajetória para o reconhecimento da violação como crime de guerra no Kosovo. Após décadas de pressão da sociedade civil, e graças à liderança firme da então Presidente do Kosovo, Atifete Jahjaga, o parlamento aprovou legislação que considera a violação como crime de guerra e oferece compensações às sobreviventes. 

Esta vitória está profundamente alinhada com o espírito da Resolução 1325, que exige a proteção das mulheres e raparigas contra a violência sexual em conflitos armados e a responsabilização dos perpetradores. O processo legislativo kosovar também permitiu quebrar tabus: com o tempo, homens começaram a revelar que tinham igualmente sido vítimas de violação durante a guerra e a ocupação, ampliando a compreensão pública sobre a dimensão real da violência sexual em contexto de conflitos armados.

 

Um caminho de cooperação contínua

O evento da PpDM em Lisboa concluiu-se com uma mensagem clara: para que a agenda “Mulheres, Paz e Segurança” avance de forma significativa, é necessário reforçar alianças entre organizações da sociedade civil e diplomatas comprometidas/os. Hoje mais do que nunca, redes transnacionais (que cruzam fronteiras étnicas, culturais e políticas) são fundamentais para pressionar por políticas inclusivas, financiamento sustentável e participação real das mulheres.

Este encontro simboliza não apenas uma celebração dos 25 anos da Resolução 1325, mas o compromisso de transformar discurso em ação: para que a paz não seja só a ausência de conflito, mas a presença ativa da igualdade, da justiça e da participação plena de todas as pessoas.

A continuidade deste trabalho conjunto foi assumida como um compromisso essencial para enfrentar os desafios dos próximos anos.

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