Votação no Tribunal Constitucional e Ministério da Saúde: os direitos das mulheres não são optativos
Sabemos que a autonomia corporal de mulheres e raparigas e a tomada de decisões em torno de sua saúde são fundamentais tanto para a independência individual das mesmas quanto para a realização da igualdade entre mulheres e homens e para alcançar um desenvolvimento sustentável.
Os direitos das mulheres são direitos humanos, e os direitos humanos incluem os direitos das mulheres a controlarem e decidirem livre e responsavelmente sobre assuntos relacionados com a sua sexualidade, incluindo saúde sexual e reprodutiva, livre de coerção, discriminação e violência.
§223 Plataforma de Ação de Pequim: (…) a decidir, livre e responsavelmente, o número, espaçamento e momento de terem os seus filhos e obterem a informação e meios para tal, bem como o direito de alcançarem o mais elevado nível de saúde sexual e reprodutiva. Também incluem o seu direito a tomarem decisões, quanto à reprodução, livres de discriminação, coação e violência, em conformidade com o estabelecido nos documentos de direitos humanos.
Tendências internacionais
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Agenda 2030 – enfatizam níveis mais elevados de escolha informada na tomada de decisões reprodutivas. No entanto, os dados mostram que apenas 57% das mulheres em termos mundiais estão em condições de tomar as suas próprias decisões sobre a sua saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
Há uma reação à igualdade entre mulheres e homens financiada e bem orquestrada, que procura deliberadamente minar o acesso ao sistema internacional de Direitos Humanos das mulheres e raparigas. Este fenómeno está ligado com contextos mais amplos relacionados com o aumento do populismo, o aumento do fundamentalismo e o aumento do extremismo violento, juntamente com esforços de questionamento do sistema internacional de direitos humanos e enfraquecimento da cooperação multilateral.
Questões como a educação sexual abrangente permanecem contestadas. Apesar da evidência de que esta é uma ferramenta poderosa para prevenir resultados negativos em termos de saúde sexual e reprodutiva, incluindo infeções sexualmente transmissíveis e gravidez precoce e indesejada. Nalguns contextos a recusa existe apenas por causa da palavra “sexualidade”.
Outros dos obstáculos incluem a objeção de consciência usada por pessoal médico. Nalguns países a falta de reembolso de medicamentos necessários ou da intervenção, assim como longos períodos de espera e aconselhamento obrigatório antes da intervenção. Também a falta de proximidade aos centros médicos ou a impossibilidade de aceder aos mesmo, entre outros, devido à objeção de consciência, têm sido obstáculos significativos, como foi evidente em tempos de pandemia. Além destas barreiras, as mulheres que querem recorrer ao aborto também podem sofrer estigmatização.
Os obstáculos persistem e agravam-se e, nalguns países, de forma particularmente visível nas últimas semanas
Nas últimas semanas as notícias têm sido profundamente preocupantes nos Estados Unidos, na UE, nas suas fronteiras, e em Portugal também.
Nos Estados Unidos, o draft conhecido do Supremo Tribunal de Justiça sugere a possível revogação da decisão Roe.v.Wade de 1973 que garante o direito ao aborto no país. Se confirmada, esta alteração vai restringir consideravelmente ou até proibir o direito ao aborto nos EUA. E isto num dos poucos países que nem sequer ratificaram a Convenção sobre a Eliminação de Toda as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) das Nações Unidas, a magna carta dos Direitos Humanos das Mulheres.
Na Croácia, Mirela Čavajda viu o seu direito ao aborto diminuído, apesar do diagnóstico médico de um tumor cerebral do feto que resultaria na sua morte. Todos os hospitais que ela contactou na capital do país, Zagreb, recusaram-se a realizar o procedimento. Embora a interrupção da gravidez nesta fase e nessas circunstâncias seja legal na Croácia, alguns hospitais recusaram-se a examinar a Mirela com alegações de que todo o pessoal médico ginecologista era objetor/a de consciência. A Mirela foi forçada a viajar para a vizinha Eslovénia e aí interromper a gravidez porque foi impedida de exercer os seus direitos reprodutivos no seu próprio país, apesar do apoio público, da decisão da comissão especial de segunda instância e do facto de este direito ser garantido pela lei croata. Foi somente graças à cobertura da imprensa do seu caso que ela finalmente teve acesso a assistência ao aborto.
Na Polónia, além da já muito restritiva lei do aborto, grupos conservadores antiaborto, como o Ordo Iuris, estão a pressionar profissionais de saúde para impedir que as mulheres refugiadas ucranianas façam aborto se os casos de violação não forem comprovados por meio de procedimentos criminais.
Em Itália, pressões semelhantes vindas de grupos antiaborto têm sido relatadas, enquanto que a objeção de consciência é generalizada, com 7 em cada 10 ginecologistas a recusarem-se a realizar abortos, de acordo com os números do Ministério da Saúde italiano.
Em Malta o aborto é proibido.
União Europeia
Embora as leis sobre o aborto na UE sejam tratadas ao nível nacional, o Parlamento Europeu enviou fortes sinais positivos nos últimos meses, enfatizando que o princípio da subsidiariedade dos Estados-Membros não pode ser usado como pretexto para impedir o acesso ao aborto:
Em particular, a resolução adotada em 24 de junho de 2021, sobre Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos na UE, no quadro da saúde das mulheres, instou “os Estados-Membros a descriminalizar o aborto, bem como remover e combater os obstáculos ao aborto legal”.
Um mês depois, o relatório do Parlamento com recomendações à Comissão Europeia identificava a violência contra as mulheres como uma nova área de criminalidade listada no artigo 83.º, n.º 1, do TFUE, afirmando que “a coerção reprodutiva e a negação de cuidados de aborto seguro e legal também são uma forma de violência de género”. Congratulamo-nos com esta posição do Parlamento Europeu com a qual o Lobby Europeu das Mulheres e as suas coordenações nacionais, as associações de mulheres de toda a Europa, se identificam e interpelam os Estados-Membros a incluir esta dimensão na proposta de Diretiva para combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica apresentada pela Comissão em março de 2022: inclusão de uma alteração para reconhecer a negação de assistência ao aborto seguro e legal como forma de VAWG – violência contra as mulheres e as raparigas.
Portugal
Acesso das Mulheres à Justiça
Amanhã, dia 31 de maio, será votado o nome do juiz Tribunal Constitucional a propósito da possível escolha para cooptação daquele Juiz Conselheiro. As posições daquele juiz, em violação expressa dos Direitos Humanos das Mulheres, designadamente o Direito à IVG, não são compatíveis com a sua integração num órgão que é o garante da Constituição da República Portuguesa.
Isto é tanto mais flagrante quanto vivemos num país em que a justiça para as mulheres é frequentemente condicionada por estereótipos sexistas patentes nas condutas de profissionais do sistema judicial. De que foi exemplo este.
A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres reitera que os Direitos das Mulheres são Direitos Humanos e que o Estado Português está vinculado a compromissos de Direito Internacional ratificados, e que portanto vigoram na ordem interna e podem ser invocados em Tribunal, desde logo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW) e a sua Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça, texto interpretativo da CEDAW.
Acesso das mulheres aos Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva
Neste mês de maio de 2022, o país foi surpreendido com uma proposta de critérios de avaliação nas Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B), no âmbito da qual médicos/as de família poderiam vir a ser avaliadas e avaliados por interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes da sua lista e pela existência de doenças sexualmente transmissíveis (DST) nas mulheres sob proposta da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), validados pela Direção-Geral da Saúde (DGS), e o Grupo de Apoio às Políticas de Saúde na área dos cuidados de saúde primários.
Houve o bom senso por parte do Ministério da Saúde de não avançar com a sua implementação após ampla contestação da Comissão Nacional de Medicina Geral e Familiar da Federação Nacional de Médicos (FNAM), das organizações de mulheres e da sociedade em geral. No entanto, o simples facto de esta proposta ter sido avançada é sintomático da falta de literacia em direitos humanos das mulheres e da falta de efetivação do mainstreaming de género no setor da saúde em Portugal.
Por outro lado, é inexplicável considerando que os números da IVG em Portugal têm decrescido desde que a lei foi implementada, de acordo com os dados disponíveis. Sendo lamentável que o último relatório tenha sido publicado em 2018 com dados de 2017.
O que precisamos é que os compromissos assumidos em direção à educação sexual abrangente, contraceção, aborto seguro e uma sociedade livre de violência masculina contra as mulheres e raparigas sejam acompanhados de investimento e ação.
A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres propôs há dois anos uma educação sexual feminista que desconstrua as relações desiguais de poder e assente em 5 pilares:
- educação holística para a saúde e direitos sexuais e reprodutivos;
- foco na prevenção da violência;
- encorajar o pensamento crítico;
- promover comportamentos e interações saudáveis e não coercivas;
- e potenciar o desenvolvimento pessoal e as atitudes saudáveis para consigo própria/o.
A educação sexual não pode existir isoladamente, devendo ser parte de um sistema educativo que contribua para a eliminação do sistema patriarcal estruturalmente prejudicial.
A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres propõe também que as consultas de planeamento familiar sejam denominadas de consultas de saúde sexual e reprodutiva – incluindo o planeamento familiar e que haja um investimento na divulgação e proximidade junto de raparigas e rapazes e de mulheres e homens, no sentido do seu acesso e usufruto igualitário ao longo do ciclo de vida.
O Ministério da Saúde tem que assegurar a concretização do acesso à IVG, sem custos, legal e segura em todos os territórios do país e a todas as mulheres independentemente do seu estatuto, tal como previsto na lei, o que foi dificultado no período da pandemia e suscita indignação com o aventar de normas técnicas pseudo neutras, que não são mais do que sexismo disfarçado, que importa eliminar!
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