Proteger as crianças da violência masculina familiar: um imperativo do Estado português

Hoje, no dia internacional das famílias – 15 de maio – a PpDM manifesta o seu sentido pesar pelo assassinato da Valentina pelo pai. Manifestamos igualmente muita preocupação pela rapariga de 15 anos cujo pai agressor sexual foi colocado em liberdade pelo juiz de Braga.

Infelizmente não podemos deixar de pensar que, na semana passada, duas crianças do sexo feminino não foram protegidas pelo Estado português. Tendo por fonte as notícias que têm saído nos últimos dias, nomeadamente quanto à eventualidade de Valentina ter ficado em guarda partilhada entre mãe e pai, ficamos com a perceção de estarmos perante uma ausência do dever de proteção das crianças por parte do Estado, que recai, desde logo, em decisões tomadas pelos tribunais:

  • um, que decidiu sobre a guarda partilha das responsabilidades parentais sem ter tido em consideração o superior interesse da criança (que no passado já tinha fugido da casa do pai em busca da segurança na casa da mãe);
  • e outro que minimizou a violência sexual e o risco de vida da mãe e das suas duas filhas (que saíram de casa para sua própria proteção), e, desta forma, desvalorizou por completo a severidade da violência sexual, física e psicológica a que a rapariga de 15 anos foi sujeita.

Não nos são estranhas estas decisões dos juízes. Em fevereiro de 2019 apresentámos o relatório sombra das ONG ao Comité da Convenção sobre os Direitos da Criança, chamando em particular a atenção para 2 grandes áreas de preocupação: violência contra as crianças no contexto da violência doméstica; e a violência sexual, particularmente contra raparigas e jovens mulheres.

Violência contra as crianças no contexto da violência doméstica

Os números dos femicídios em Portugal são elevados. Se tomarmos como referência o ano de 2019 sabemos que esse foi o ano em que 27 mulheres e uma menina foram mortas no contexto de relações de intimidade / violência doméstica. Mulheres com idades compreendidas entre os 2 e os 93 anos; algumas assassinadas em espaços públicos, outras na presença das filhas e dos filhos. Tal cifra corresponde a 1 mulher assassinada por cada 194.000 mulheres em Portugal.

No contexto da violência doméstica – no quadro do qual a Valentina foi assassinada – as crianças estão longe de serem consideradas, pelo Estado português, como vítimas diretas. O relatório produzido pelo Comité GREVIO relativo à avaliação da implementação da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (vulgo Convenção de Istambul) em Portugal refere que as decisões dos Tribunais de Família e Menores relativas à atribuição das responsabilidades parentais, aos direitos de guarda e de visita das crianças não têm a devida consideração pelos direitos das vítimas, pelo impacto da violência exercida pelos pais contra as mães nas crianças que a testemunham, e não procuram determinar de facto o que é o superior interesse da criança.

A resistência, em particular de juízes, é muita. A 23 de abril de 2020 o Conselho de Ministros/as aprovou o diploma que procede à alteração do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das vítimas, na sequência das recomendações do Comité GREVIO. Procurando assegurar a proteção efetiva das vítimas de violência doméstica, a proposta de alteração à lei contempla uma alteração fundamental – atribui-se competências cíveis aos tribunais criminais para o proferimento de decisões provisórias urgentes de proteção da vítima, tais como a regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais, a utilização provisória da casa de morada de família e a guarda de animais de companhia, sendo imediatamente comunicadas ao MP do tribunal competente.

Porém, esta foi uma alteração recebida pelo Conselho Superior de Magistratura com muito animosidade. Este órgão emitiu um parecer dizendo que “não cremos que seja por falta de lei que hoje não temos os resultados que todos gostaríamos de ter em matéria de controlo e diminuição do fenómeno da violência doméstica. O que ocorre de forma notória é a falta de recursos para atalhar na origem, de forma estrutural e séria, às causas da violência doméstica.” Sabendo que a proposta do Governo transfere para os juízes de instrução criminal competências numa matéria que pertencia, até agora, aos juízes de família e menores – como a regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais-, o Conselho Superior de Magistratura entende que “não faz sentido que decisões deste tipo sejam tomadas por juízes que nunca se especializaram em matérias tão melindrosas”.

A este respeito reforçamos o que a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, refere no artigo escrito a 14 de maio no Jornal O Público:

Mais do que o ocasional e efémero sobressalto, impõe-se a determinação da ação preventiva que reduza as oportunidades de revitimização e assegure, no momento em que ela é necessária, a proteção da vida e da integridade física e moral de todas as vítimas. Proteger as vítimas não constitui mera opção. É um dever indeclinável do Estado, que não pode desconsiderar a tutela da personalidade da vítima, assim como a proteção tempestiva devida às vítimas menores que, amiúde, experimentaram desde muito cedo uma existência marcada pela violência e pela tragédia. (…) é preciso ir mais longe. E ir mais longe significa assegurar que o primeiro tribunal que toma conhecimento do facto – normalmente o tribunal de instrução criminal – identifica soluções, ainda que provisórias, para todos os aspetos relevantes do conflito, aqui se incluindo a regulação das responsabilidades parentais e as medidas de tutela da personalidade.”

Infelizmente são, também, várias as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens que têm frequentemente assistentes sociais e profissionais que não têm conhecimento ou a devida consideração sobre as dinâmicas da violência doméstica e sobre o facto de a violência em relações de intimidade / violência doméstica afetar desproporcionalmente as mulheres e as raparigas.

Sabemos que todas/os as/os profissionais que lidam com crianças e jovens – em particular juízes dos Tribunais de Família e Menores e Criminais e ainda das CPCJ – têm de ter formação obrigatória inicial e continua sobre as dinâmicas da violência em relações de intimidade / violência doméstica, sobre o facto desta violência afetar desproporcionalmente as mulheres e sobre o impacto da violência nas crianças que são, também elas, afetadas pela violência doméstica.

As Observações finais do Comité dos Direitos da Criança a Portugal (de 2019) são muito claras: é preocupação desse Comité a “contínua ausência de legislação e diretrizes para a determinação e aplicação do superior interesse da criança nas áreas da justiça, (…), proteção infantil” (§17). Nesse sentido,

O Comité recomenda que o Estado Parte:

  • Garanta que o princípio do superior interesse da criança seja incorporado na legislação e em todas as políticas, programas e projetos relevantes que tenham um impacto direto ou indireto nas crianças;
  • Desenvolva procedimentos e critérios para orientar todas as pessoas relevantes e com autoridade para determinar o interesse superior da criança em todas as áreas e dar-lhe o devido peso como consideração prioritária” (§18)

Violência sexual, particularmente contra raparigas e jovens mulheres

A violência sexual é uma matéria em que o Estado tem falhado bastante – note-se que Portugal só tem dois serviços especializados para sobreviventes de violência sexual e apenas um centro de apoio para vítimas de violação em situações de crise.

A violência sexual é algo que muitas mulheres e raparigas em Portugal tem experienciado ao longo das suas vidas. Sabemos que, em 2018, 89% das vítimas de violação foram mulheres e a totalidade dos violadores eram homens (familiares ou conhecidos das mulheres em 56% das situações e que apenas 1,4% era desconhecido da vítima). Sabemos que, em 2018, 79% das crianças violentadas sexualmente eram do sexo feminino e que 70% das vítimas tinha entre 8 e 13 anos. A quase totalidade dos agressores eram homens (98%), na maioria familiares (46,8%) ou conhecidos das crianças (22,8%).

A 2 de abril, a PpDM e outras organizações promotoras dos direitos humanos das mulheres, a propósito dos indultos por razões humanitárias e alterações à execução de penas, alertaram para o facto: Abusadores sexuais não podem ser soltos! Abusadores sexuais não podem regressar ao local onde a prática do crime ocorreu e/ou onde residem as vítimas.

Como pode um tribunal decidir pela liberdade de um suspeito abusador sexual de uma rapariga de 15 anos? Não é tolerável a razão invocada pelo tribunal – da não perigosidade da continuidade da conduta dado que a rapariga e a mãe deixaram a morada de família! Porque continuam a ser as vítimas as que têm de fugir, de sair de casa? Deixar os agressores em liberdade é reforçar a cumplicidade do sistema de justiça quanto à tolerância social face aos crimes sexuais contra as mulheres e raparigas.

Por tudo isso, recentemente (30 de março) a PpDM e várias ONG de mulheres enviaram uma carta ao Governo propondo 12 medidas a propósito da proteção das vítimas de violência masculina em relações de intimidade e violência sexual (ler a notícia na integra aqui).

São muitos os nossos gritos, são muitas as nossas ações e chamadas de atenção. Todavia, persiste uma cultura patriarcal que tolera a violência masculina contra mulheres e raparigas, e que está bem presente nos nossos tribunais e em quem toma decisões sobre as responsabilidades parentais. Até quando o Estado português pode ser complacente com isto?

Hoje, dia internacional das famílias, chamamos a atenção para o relatório da ONU Mulheres: O progresso das mulheres no mundo 2019-2020 – Famílias num mundo em mudança, que dá conta de que na Europa e América do Norte tem havido progresso ao nível legislativo no combate à violência contra as mulheres mas persiste uma implementação deficitária dessa legislação: na região da Europa e América do Norte, 6,1% das mulheres com idade entre os 15 e os 49 anos que sempre tiveram parceiros sofreram violência física ou sexual perpetrada pelo parceiro atual ou anterior parceiro nos últimos 12 meses (Fonte: Regional factsheet Europe, North-America, Australia and New Zeland on the most relevant issues and facts on families 2019-2020).

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