Gestação de substituição | Carta aberta de associações francesas ao CoE

Hoje a Coordenação Lésbica de França – CLF, a Coordenação das Associações para o Direito à Contraceção e ao Aborto – CADAC e o Coletivo pelo Respeito da Pessoa – CoRP enviaram uma carta aberta ao Presidente da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa manifestando sérias preocupações sobre a legalização da gestação de substituição. A PpDM, revendo-se na posição que estas organizações e coletivos tomam, traduziu a carta transcrevendo-a em baixo.

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Em 15 de Março de 2016, a Comissão de Assuntos Sociais da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, reunida à porta fechada em Paris, rejeitou o projeto de relatório, acompanhado de propostas de resolução e de recomendação, preparado pela Senhora Senadora Petra De Sutter, sobre o tema “Direitos do Homem[1] e questões éticas relativas à gestação de substituição”.

Este projeto, que consistia em pedir ao Conselho da Europa o seu consentimento e a sua legitimação para a prática da gestação de substituição a coberto nomeadamente de regulação através de “guidelines[2], suscitou então uma grande preocupação e inquietação da parte de numerosas associações de defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres em particular.

Assim, 47 organizações não-governamentais de diferentes países da Europa, assinaram um apelo a favor da abolição universal da gestação de substituição (GDS) e pediram ao Conselho da Europa para trabalhar na defesa dos direitos humanos, e neste caso pela dignidade das mulheres e das crianças (http://coordinationlesbienne.org/spip.php?article351).

É por isso que as associações signatárias tomaram conhecimento com estupefação que a relatora havia sido encarregada de apresentar um novo relatório sobre esta questão, sempre numa ótica favorável à GDS sob a máscara do interesse das crianças ou de uma hipócrita distinção entre uma GDS que seria “comercial” e outra que seria “altruísta” e portanto legítima.

Trata-se de um golpe antidemocrático que não é aceitável.

Não é aceitável que a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aborde à porta fechada, sem a devida informação à sociedade civil, um assunto tão sensível como o da gestação de substituição.

É ainda menos aceitável que a relatora do projeto se encontre numa situação de conflito de interesses que é contrária às regras de funcionamento da Assembleia Parlamentar: não só a Senhora De Sutter dirige um serviço hospitalar que pratica a gestação de substituição, o que lhe confere um interesse profissional incompatível com qualquer neutralidade sobre o assunto, como o seu serviço colabora com a clínica indiana Seeds of Innocence[3] onde a gestação de substituição (abertamente comercial) é praticada e a qual coloca em evidência no seu site na Internet a colaboração com a Senhora De Sutter como referência para os seus clientes internacionais de GDS.

É a confiança do público nos trabalhos da Assembleia Parlamentar que está em causa numa época em que a transparência das instituições é uma questão de preocupação legítima das cidadãs e dos cidadãos europeus.

Não é sobretudo aceitável que a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa avalize e legitime, a coberto de regulamentação e instrumentalizando a sensível questão do interesse das crianças, o desenvolvimento do mercado mundial da gestação de substituição.

Esta prática constitui na sua própria origem um atentado aos direitos fundamentais: um processo no qual uma mulher põe à disposição durante nove meses o conjunto da sua vida física e psíquica para transportar e colocar no mundo uma criança entregue à nascença às pessoas que a encomendaram é uma apropriação do corpo de outrem que não tem precedente desde a abolição da escravatura. O direito à saúde é violado: o que é que sabemos dos efeitos imediatos e a longo prazo dos “tratamentos hormonais” necessários para esta gravidez artificial? Esta questão é sistematicamente ocultada.

A distinção entre uma gestação de substituição que seria “comercial” e uma outra que seria “altruísta” é pura hipocrisia: é obviamente através de dinheiro que é extorquido o consentimento da mãe-portadora, mesmo que o pagamento seja disfarçado como mera “compensação”, a pressão psicológica dentro da família ou entre amigos não é menos violenta do que a necessidade financeira.

Os beneficiários da gestação de substituição, os seus patrocinadores e os profissionais que dela beneficiam, colocam em perigo a saúde física e mental da mãe-portadora, cujos interesses, bem como o gozo dos seus direitos mais básicos, tais como o controle das decisões relativas à sua saúde, passam sistematicamente para trás dos interesses desses patrocinadores. A proliferação de escândalos demonstra cabalmente que, em especial, a autonomia jurídica da mãe-portadora é esvaziada de substância dadas as graves consequências que sofre quando ousa opor-se à vontade dos patrocinadores.

Eles também põem em perigo a saúde mental da criança transformada em um objeto de contrato, da qual se pode dispor como de um produto que estaria no mercado com desprezo pelos laços estabelecidos com a sua mãe durante a gravidez.

Uma tal prática de exploração é contrária ao direito internacional e europeu de proteção dos direitos humanos e, em particular mas não exclusivamente, contrária à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), à Convenção do Conselho da Europa sobre a prevenção e a luta contra a violência contra as mulheres, aos textos internacionais e europeus em matéria de luta contra o tráfico, bem como contrária à Convenção de Oviedo, que proíbe a transformação do corpo humano numa fonte de lucro.

Finalmente, dadas as ligações que unem o Conselho à União Europeia, lembramos que o Parlamento Europeu, no seu relatório sobre os direitos humanos relativo a 2014, “condena a prática da gestação de substituição que vai contra a dignidade humana das mulheres “( §114 ) .

Agradecemos-lhe, Senhor Presidente da Assembleia Parlamentar, que no exercício das suas funções garanta o respeito pelos direitos humanos e pela dignidade de cada pessoa.

 

[1] NT – Segundo original em francês: Droits de l’homme

[2] NT – Sic no original em francês. Guidelines: orientações

[3] NT – Sementes de Inocência

 

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