Feministas francesas: sobre a aprovação da gestação de substituição em Portugal

A Coordenação das Associações pelo Direito ao Aborto e à Contracepção, a Coordenação Lésbica em França e o Colectivo pelo Respeito da Pessoa publicaram hoje um ponto de vista feminista sobre a aprovação da gestação de substituição pelo Parlamento Português no passado dia 13 de maio. O texto publicado pode ser lido no original aqui. A PpDM fez a tradução do texto para português, que aqui se partilha.

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A esquerda portuguesa atraiçoou os direitos humanos e as classes populares ao liberalizar o comércio dos ventres e das crianças.

Com o apoio activo de uma parte da esquerda portuguesa, o Parlamento português legalizou, no passado dia 13 de Maio de 2016, as mães portadoras (mères porteuses)[1], tornando possível o recurso a mães-portadoras às mulheres que não podem conceber devido a infertilidade. Esta maternidade de substituição, denominada “gestação de substituição” (GDS) (Gestation pour autrui) é uma forma de tráfico de crianças à custa das mulheres. Recordemos a ideia e sobretudo os factos: uma mulher, reduzida à condição de procriadora, gera uma criança por conta de outrem. Apesar de esta prática se ter traduzido em todo o lado por idêntica exploração económica e psicológica das mulheres pobres por pessoas privilegiadas, heterossexuais como homossexuais, muitas pessoas à esquerda estão tentadas a considerar esta expansão do domínio de alienação dos seres humanos pelas leis do mercado, um “progresso”.

Em Lisboa salvou-se a honra: o legislador português determina que a gestação de substituição seja obrigatoriamente “ética”. A mãe-portadora não pode ser remunerada. Para além disso, esta lei estende o direito à procriação medicamente assistida (PMA) a todas as mulheres – compradores de crianças e causa lésbica tudo no mesmo saco – estamos portanto num quadro de abertura aos direitos das/dos homossexuais, tudo corre bem quando acaba bem. (tout va très bien Madame la Marquise). A lei foi proposta pelos partidos da esquerda, logo também aqui tudo corre bem: estamos no campo do progresso.

Nós, um colectivo que reúne associações feministas de esquerda, consideramos esta lei um erro de julgamento de graves consequências. Estamos estupefactas/os por a suposta esquerda apresentar este tipo de programa que constitui a abertura perfeita para novas alienações das mulheres. Estamos consternadas por se pretender que a gestação de substituição seja um progresso. “Eles conseguiram-no” (Libération, 14 e 15 de Maio de 2016), como se fosse um progresso, uma conquista, um feito! E é preciso aderir à ideia de que Portugal “ousou” e de que a França continua atrasada – será retrógrado não fazer como eles!

A decisão portuguesa ilustra o lamentável, e cada vez mais generalizado, abandono das classes populares pela esquerda. Cinismo funesto quando se sabe que nada nos supostos constrangimentos à gestação de substituição será respeitado: quem verificará se a mulher rica que obtém um certificado de infertilidade de um médico cúmplice não está a contornar a lei? Quem irá sancionar uma mulher pobre que receba dinheiro, como acontece correntemente no Reino Unido onde a lei também era suposto banir a remuneração? E quem irá verificar se a “compensação”, que lá alcançou muitas vezes o equivalente ao nosso salário mínimo, não se transforma exactamente na mesma coisa que um mercado a saber, o aluguer puro e simples de um ser humano que deixou de ter os meios económicos para resistir, e a venda pura e simples de um ser humano que deixou de ter uma palavra a dizer? Quem é que pensou, ao votar esta lei, nos riscos que correm as mulheres que se deixam apanhar no terrível “jogo” da gestação que a maternidade por conta de outrem implica – da hiperestimulação dos ovários potencialmente cancerígena aos riscos da gravidez e do parto, à alienação da sua liberdade e ao sentimento de ter abandonado uma criança que ela terá posto no mundo com a finalidade de se separar dela?

O mais revoltante é que uma parte da esquerda portuguesa emprestou a sua voz a esta lei iníqua.

Anos de observação do crescente fenómeno das mães-portadoras demonstram-no: é evidente que as mulheres portuguesas que procriarão as crianças de outros serão, na sua esmagadora maioria, mulheres pobres. Com os desvios habituais que não tardarão a generalizar-se, apesar dos Tartufos[2] que se regozijam que o dinheiro esteja banido destas trocas. Em Portugal, a explosão da pobreza causada pela crise económica não fará senão aumentar o “exército de reserva” de mulheres à mercê dos compradores de mães-portadoras.

É tempo de reflectir sobre o que a GDS representa sob todos os seus aspectos: exploração do corpo de outrem, sujeição das mulheres, mercado humano internacional de mulheres e de crianças, derivas jurídicas a partir de contratos comerciais, negação da saúde das mulheres. E de exigir a sua abolição!

Vai ser necessário lutar. Observamos na Europa um recente progressivo deslizar no sentido de fazer aceitar o princípio da GDS: supressão da noção de remuneração (visivelmente demasiado reprovável) depois da noção de “compensação” (dinheiro!…), depois da noção “ética”. Chegamos agora à noção de GDS “familiar”, “por amizade” e em Portugal à GDS “excepcional” e “gratuita” para as mulheres estéreis, com o objectivo de fazer reconhecer o princípio da GDS. O perigo é mesmo este: quem aceita uma forma de reconhecimento da GDS cauciona o princípio e a prática da GDS, quaisquer que sejam as suas formas.

Na crescente confusão entre a esquerda e a direita, tantas vezes denunciada nestes últimos anos, não é raro que a única diferença entre a abordagem de esquerda e a de direita, quando de idêntico esquecimento dos mais fracos, seja a boa consciência com a qual se assume este esquecimento quando se apregoa ser de esquerda. A esquerda europeia atravessa uma crise terrível. Eis mais um sinal alarmante. Se a esquerda não se reencontrar, se ela não compreender que um projecto social de emancipação das mulheres não passa por colocar o seu corpo à disposição, que a igualdade efectiva entre mulheres e homens deve combater os estereótipos de género, e não reforçá-los, se a esquerda não é portadora do projecto de abolição universal do tráfico de mães e crianças, quem o conseguirá?

Coordenação das Associações pelo Direito ao Aborto e à Contracepção

Coordenação Lésbica em França

Colectivo pelo Respeito da Pessoa

 

[1] NT. Vulgo “barrigas de aluguer”.

[2] NT. Tartufo: indivíduo hipócrita; que dissimula ou engana.

Texto original em HUFFPOST

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