Do “direito a nascer” ou o insuportável poder das mulheres pela Maria do Céu da Cunha Rêgo, 14 jul. 2015

Reproduzimos o artigo de opinião da Maria do Céu da Cunha Rêgo, hoje publicado no Público pela importância de que se reveste no âmbito do debate que decorrer na Assembleia da República com os dois projectos-lei que pretendem fazer regredir a lei da IVG em Portugal. 

“O objectivo é o reforço da ideia da necessária submissão das mulheres pelo esmagamento do seu livre arbítrio, ao menos em matéria reprodutiva.

Na despedida da legislatura, vai a Assembleia da República deliberar sobre se aceita ou recusa dizer ao País, por via de lei, que é às mulheres que cabe o dever social de ter filhos.

E que esse dever para com a sociedade tem que se sobrepor à sua vontade individual, porque é delas e do seu querer de autonomia  e liberdade – primeiro ignorado, ocultado, disfarçado e punido, mas finalmente reconhecido, embora longe de alcançado – a culpa da quebra da natalidade em Portugal. Delas e de uma ordem jurídica que proclama e defende para o mundo – ainda que com o sucesso relativo que mostra a assimetria de resultados das estatísticas  – a igualdade de mulheres e homens em todas as esferas da vida.

É isto que essencialmente está em causa nas propostas sobre essa arrogância  impossível de garantir juridicamente face a uma natureza ainda imprevisível, que a presumida superioridade moral de alguns contando com a distracção de outros, designou como “direito a nascer”.

O objectivo é o reforço da ideia da necessária submissão das mulheres pelo esmagamento do seu livre arbítrio, ao menos em matéria reprodutiva, com uma dose quanto baste de humilhação e crueldade, como demonstra a tentativa de esvaziamento do direito à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) reconhecido na lei apenas nos casos em que, não ultrapassando as 10 semanas, resulte só da vontade da mulher.

E ainda que a proposta venha acompanhada por umas ditas promissoras iniciativas – ou impropriamente apelidadas de apoio à maternidade e à paternidade, ou  reclamando abusivamente justiça na distribuição dos recursos – é sobre isto que o Parlamento se vai pronunciar, aproveitando o dado objectivo da quebra da natalidade. E para estas propostas não há Direitos Fundamentais, nem Constituição, nem Convenções que vinculem o Estado Português, nem compromissos do mesmo Estado com organizações internacionais. Há só a crença de que as regras do Estado de direito democrático podem não se  aplicar, quando há que travar esse único e insuportável poder das  mulheres que é a certeza da progenitura e, assim, da imortalidade. E porque este é um inelutável poder da natureza, consideram-se os poderes sociais autorizados a neutraliza-lo, transformando-o por construção cultural sedimentada por séculos e “ao longo de uma sábia educação” (cito Novas Cartas Portuguesas) – em dever procriativo. E não apenas quanto à gestação, mas à criação e ao cuidado como decorrências feitas “naturais”, e por isso não só obrigatórias mas desejadas e enaltecidas como próprias das mulheres, das “dignas”, das “que se prezam” e das “que se dão ao respeito”. Se para continuar a reforçar esta ideia, for preciso voltar a assegurar na lei interna que ao poder natural das mulheres se responde com o poder construído dos homens e das mulheres que aceitam o jugo, ainda que alegando independência e modernidade como estratégia inteligente de preservação de auto-estima, e mesmo se for preciso que fiquem incapacitadas ou morram mulheres por aborto inseguro, porque essa é uma “inerência”  da sua condição biológica e da sua função social e porque, no fundo, o que importa não é a justiça da igualdade mas a força de quem sempre mandou em monopólio, são apenas danos colaterais porque este fim justifica todos os meios!

Como cidadã para quem a lei é para cumprir, como jurista, mulher casada, mãe de duas filhas, avó de duas netas e um neto, católica praticante que sabe que sem Estado laico, formal e substantivo, não se pode eficazmente prevenir a ira e assegurar a paz, e como pessoa que há largos anos trabalha pela igual dignidade, pela igual liberdade e pelo equilíbrio dos resultados do desenvolvimento humano das mulheres e dos homens, do meu Parlamento – a sede por excelência do Estado de Direito Democrático – eu espero lucidez, equilíbrio, respeito, visão de futuro, coragem política e sentido de Estado. Em defesa da honra individual e colectiva de todos e todas nós.

Jurista, ex-Secretária de Estado para a Igualdade”

Original aqui.

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