Desmontar a (falácia da) regulamentação e da descriminalização da prostituição

A Juventude Socialista vai levar a votação a moção setorial “Pela regulamentação da prostituição”. O cerne da sua proposta é a descriminalização do lenocínio simples, e a auto-organização das e dos “trabalhadores do sexo” nas designadas casas auto-geridas. Chamam a isto “regulamentação” pelo que se pressupõe que consideram ser “proibicionistas” as alternativas de políticas públicas sobre o sistema prostitucional, como a que vigora em Portugal, ou a recentemente entrada no Parlamento proposta pela deputada independente Cristina Rodrigues. Nada de mais equivocado!

Para quem conhece e acompanha os impactos dos diferentes modelos de políticas públicas sobre o sistema de prostituição – regulamentação (em vigor, por exemplo, na Alemanha e na Holanda); proibicionismo (em vigor, por exemplo, na Croácia), abolicionismo ou modelo da igualdade (em vigor, por exemplo, na Suécia, Noruega, França, Irlanda), ou despenalização total (em vigor na Nova Zelândia) – torna-se evidente que a JS propõe que em Portugal vigore o modelo da Nova Zelândia de “despenalização total” porque, afinal, em Portugal, a única coisa que é penalizada é a intermediação (todos aqueles que beneficiam com a exploração sexual de outrem): por cá não é crime estar em situação de prostituição, e não é crime comprar o acesso ao corpo de uma pessoa através do dinheiro.  A JS apresenta  como referencial para a sua posição a petição da proxeneta Ana Loureiro, sobre a qual já nos pronunciamos.

Importa clarificar os impactos do modelo de política pública em vigor na Nova Zelândia nas pessoas em situação de prostituição e na sociedade como um todo. Algo que a JS não refere, embora tivesse podido aceder à audiência de uma mulher que a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres trouxe ao Parlamento Português para falar, precisamente, sobre a sua experiência na prostituição na Nova Zelândia. A JS não refere, portanto, que a Nova Zelândia enquadra a prostituição como uma indústria legítima e legal, que define as pessoas afetadas pelo comércio como “trabalhadoras” e os proprietários de bordeis e terceiras partes exploradoras como “empregadores e empresários de boa fé”.

Vejamos os factos!

A Nova Zelândia é uma ilha no Oceano Pacífico com cinco milhões de habitantes. No século XIX, os colonizadores europeus estabeleceram um sistema de exploração sexual das mulheres indígenas com fins lucrativos. No século 20, os bordéis disfarçados de “casas de massagem” foram tolerados e proliferaram. Em 2003, a Lei de Reforma da Prostituição, consistindo em 51 parágrafos, descriminalizou todas as partes no comércio do sexo – pessoas compradas e vendidas para sexo, compradores de sexo e terceiros. Um projeto de lei polémico, que passou por um único voto.

A Alemanha é um país com 84 milhões de habitantes da Europa Central que faz fronteira com 9 países. A prostituição tem mais de mil anos na Alemanha, com evidências desde os tempos do Império Romano. Foi tolerada na Idade Média e expandida durante a ditadura Nazi entre 1933-1945. Em 2002, a Lei da Prostituição – uma lei minimalista escrita apenas em 3 parágrafos – foi adotada pelo Parlamento alemão, permitindo a existência de bordéis e de contratos de trabalho e de serviços em contexto de prostituição.

Em ambos os países, ao longo dos séculos, as pessoas em situação de prostituição foram criminalizadas, excluídas e forçadas a exames médicos enquanto que os compradores de sexo raramente foram legalmente responsabilizados enquanto os donos dos bordéis socializaram com as elites. Já no fim do Séc. XX, proxenetas e exploradores do “comércio” do sexo foram ativamente envolvidos nos processos de decisão política e na revisão das leis em ambos os países.

As pessoas na prostituição

 AlemanhaNova Zelândia
Número

Sexo

Idade

Presença de crianças

Etnicidade

Estatuto económico

64.000 – 250.000

90% mulheres, 7% homens, 3% pessoas trans

Maioria entre 20-40 anos

Há crianças no comércio do sexo

80-90% Europa Este e do Sul Global

Maioria pobre e imigrantes (não documentadas)

7.500 – 9.000+

Maioria mulheres, pessoas trans

Maioria entre 20-40 anos

Há crianças no comércio do sexo

Sobrerepresentação Maiori, dos Ilhéus do Pacífico e da Ásia

Maioria pobre e imigrantes (não documentadas)

… podem legalmente celebrar contratos com bordéis registados, com compradores de sexo, e mover ações judiciais pelo não-pagamento.SimSim
… não necessitam obter licença do Estado; podem ter apoio jurídico ou sanitário apenas numa base voluntária.SimSim
… têm de dar passos significativos para usar preservativos, anel vaginal, etc., durante qualquer ato sexual pago.NãoSim
… podem ser multadas/os ou presas/os se recusarem pagar impostos ou desenvolverem a sua atividade em zonas tidas como de não-prostituição, e arriscam ser deportadas/os se estiverem em violação das leis de imigração.SimSim

Processos judiciais individuais – que são raros – são incapazes de lidar com as dinâmicas de poder e a violência na prostituição. Ambos os países enquadram as pessoas na prostituição como independentes, não reconhecendo as vulnerabilidades sistémicas, nomeadamente as histórias de abuso na infância, tráfico de crianças para exploração sexual e outros traumas que criam barreiras à denúncia de abusadores e de exploradores mesmo em idade adulta. Os ganhos são baixos e poucas pessoas têm contratos devido a várias razões, incluindo o estigma de estar na prostituição, o medo da exploração e a ausência de responsabilidade de terceiros. Férias, subsídio por baixa médica, licença de maternidade, pensões e outros benefícios sociais são ainda hipotéticos. Experienciam grandes abusos e violência (que se torna evidente num contexto onde o “aconselhamento laboral” se foca em como evitar a dor vaginal, a violação e o assassinato), o que leva frequentemente a doenças de longa duração, à Perturbação de Stress Pós-Traumática (PSPT) e a adições. Apoio para a saída do sistema da prostituição é raro ou inexistente para quem quer sair. Ambos os países consideram as pessoas imigrantes não-documentadas como “trabalhadoras ilegais” e não como eventuais vítimas de tráfico que necessitam de proteção e frequentemente são deportadas.

Os compradores de sexo

 AlemanhaNova Zelândia
Número

Sexo

Idade

Estatuto económico

Estado civil

10-20% da população masculina

99% são homens

Média etária ligeiramente mais baixa do que a média etária da população

Rendimentos acima da média

50% casados ou em relações

Não existem estatísticas oficiais

Maioria homens

Não existem estatísticas oficiais

Homens socialmente integrados e bem-sucedidos

Maioria casados ou em relações

… completamente descriminalizados mesmo em zonas de não-prostituição quando as pessoas na prostituição são sujeitas a sanções.SimSim
… têm de tomar passos significativos para usar preservativos ou outra proteção para todos os atos sexuais pagos.NãoSim
… podem legalmente comprar o acesso sexual a pessoas que estão sob a influência de álcool ou de drogas, doentes, com deficiência ou grávidas.SimSim
… não são responsabilizados pela compra de sexo a vítimas de tráfico dado que o comprador não é tido como responsável pela situação de quem vende sexo.SimSim

A legalização da compra de sexo consolida a desigualdade e protege os homens violentos. Longe de ser “sexo consentido entre pessoas adultas”, a prostituição legal é sempre marcada pelo desequilíbrio em relações de poder entre homens socialmente integrados que têm dinheiro para comprar atos sexuais a pessoas frequentemente marginalizadas. Os países onde a prostituição é tida como um trabalho não estão a cumprir com as suas obrigações legais de proteção social em situação de pobreza, de doença, de adição, de maternidade e de cuidados. Torna impossível a identificação de vítimas de tráfico por parte de compradores de sexo. Mais ainda, e independentemente do enquadramento legal, as estatísticas revelam que frequentemente os compradores de sexo agridem física e sexualmente as pessoas na prostituição e podem ser agentes de violência mortífera. Esta violência é motivada pelo “direito” à gratificação sexual masculina, muitas das vezes desencadeada por raiva originada na perceção de “serviços de má qualidade”. Estes agressores são encorajados por leis que os consideram ser como “quaisquer consumidores” e pouco sujeitos a responsabilização criminal.

Os donos dos bordéis

 AlemanhaNova Zelândia
Bordéis legais

 Dimensão

 Renda de quartos (+ impostos)

 Duração dos horários diários de “trabalho”

 Número de compradores de sexo por dia

Preços

10.000+

3-150 mulheres

80-185€ por dia

Não há limite legal; frequente ser entre 6-12 horas

5-15

30-60€ por comprador

900+

3-50 mulheres

65€ (110$NZD) por dia

12 (limite legal) -17 horas

5 no fim

47-59€ (80-100$NZD) por comprador

… têm de obter uma licença, que é de mais fácil obtenção do que uma para venda de alimentos ou uma para adotar um animal de estimação.SimSim
… têm de apresentar registo criminal “limpo” antes de abrirem um bordel.NãoSim
… podem ter mulheres a viver nas instalações, a dormir onde “trabalham”, tornando-as dependentes do bordel para abrigo.SimSim
… podem recusar a entrada da polícia na ausência de mandato, com exceção do SEF e de inspeções sanitárias.SimSim

Os bordéis legais não disponibilizam “espaços de trabalho” seguros e livres da exploração. Os donos de bordéis buscam a maximização de ganhos, cobrando rendas de quartos exorbitantes e outras despesas, e raramente oferecem benefícios laborais. Os bordéis podem ou não ter botões de pânico, câmaras de vigilância ou seguranças (embora nenhum destes previnam de facto o assédio, a violação ou o assassinato). Por cada bordel legal, existem muitos bordéis ilegais, e em ambos está envolvido o crime organizado. Inspeções sanitárias são escassas e incapazes de verificar o uso de preservativos. A polícia e as/os assistentes sociais têm acesso muito limitado aos bordéis, seja para prestar apoio às pessoas na prostituição seja para investigar eventuais situações de exploração. As pessoas em situação de prostituição muito raramente procuram apoio devido aos traumas, à intimidação, ao desconhecimento dos seus direitos, a não falarem a língua do país ou Inglês, à desconfiança face às autoridades e ao medo de ser deportada. Há evidências da expansão da indústria do sexo em ambos os países por forma a satisfazer a procura da prostituição.

Terceiras-partes envolvidas que lucram com a prostituição – em particular, os proxenetas

 AlemanhaNova Zelândia
Ganhos anuais

 Legalmente podem ganhar…

 As terceiras-partes podem ser…

14.5 mil milhões de euros por ano

Cerca de 50% dos ganhos de outras pessoas

Gangs como os Hell’s Angels, United Tribuns e outras redes de crime organizado dos países de origem das vítimas de tráfico (por exemplo, dos Balcãs, Nigéria)

Indústria do sexo multimilionária

Cerca de 50% dos ganhos de outras pessoas

Gangs como os Mongrel Mob e outras redes de crime organizado dos países de origem das vítimas de tráfico (por exemplo, da China, Tailândia e Taiwan)

 

… podem publicitar espaços de prostituição em locais públicos como, por exemplo, táxis, outdoors, posters, etc.SimSim
… são obrigados a ter registos das pessoas empregadas e a disponibilizá-los às autoridades.NãoNão
… podem fixar horários “laborais”, preços, ditar códigos de vestuário ou obrigar à nudez parcial ou total.SimSim
… ganham com a publicidade desumanizada e racializada, incluindo com práticas altamente arriscadas como “tudo incluído”, “renda por sexo” e festas “gangbang”.SimSim

A descriminalização dos proxenetas e de terceiras-partes torna quase impossível a condenação de exploradores. A definição legal de exploração sexual por terceiras-partes em ambos os países foi drasticamente restringida, aumentando o padrão de prova para a coação, tornando quase impossível a obtenção de testemunhos por parte das vítimas bem como a condenação de proxenetas e de traficantes. Evitando a contabilidade organizada e o estabelecimento de contratos de trabalho, é muito frequente ficarem com mais de 50% dos ganhos das pessoas na prostituição. A taxa de condenação de traficantes de seres humanos para fins de exploração sexual é baixa e tem vindo cada vez mais a baixar, enquanto que a Nova Zelândia não tem uma única condenação registada por tráfico de seres humanos para exploração sexual desde a adoção da lei em 2003. Em ambos os países há uma tendência para o aumento significativo de pessoas imigrantes não-documentadas, que são particularmente vulneráveis à exploração. O evidente desequilíbrio de poder é apenas favorável aos proxenetas e a outros que lucram muito com a prostituição.

Impactos na sociedade

 AlemanhaNova Zelândia
Opinião pública80% da população não acredita que a lei funciona.

86% associa a prostituição à exploração e entende que o Governo não está a fazer o suficiente para acabar com isso.

66% da população apoia uma emenda à lei para banir os bordéis de zonas residenciais.

50% da população apoia uma emenda à lei para banir a prostituição de rua.

… tem aumentado significativamente a resistência ao estabelecimento de bordéis em zonas residenciais, o que tem levado à implementação de leis locais mais restritas.SimSim
… os centros de emprego não podem ameaçar com cortes nos benefícios sociais a quem negar ir para a prostituição, embora a indústria do sexo seja banalizada para as pessoas em situação de maior vulnerabilidade e marginalização.SimSim
… é cada vez mais comum e generalizada a negação do dano provocado pela exploração sexual de crianças, o desincentivo e a criação de barreiras à sinalização e à saída das pessoas da prostituição.SimSim
… as pessoas na prostituição continuam a ser estigmatizadas e lutam por manter o anonimato visando evitar a exclusão social, a hostilidade e a violênciaSimSim

As comunidades mais marginalizadas são as que mais sofrem as consequências da regulamentação e da descriminalização da prostituição. Em ambos os países, as comunidades locais lutam por manter à distância os distritos vermelhos (“red-light districts”) dada a envolvência com o crime organizado, com as drogas e as ameaças às mulheres e raparigas residentes. Os centros de emprego não podem retirar os subsídios a mulheres desempregadas se estas recusarem entrar para a indústria do sexo mas podem sugerir, e fazem-no, trabalho num bordel. Pessoas mais vulneráveis e marginalizadas e mesmo empregadas em serviços são cada vez mais assediadas para sexo pago como parte de uma cultura generalizada. O que antes era considerado como assédio sexual no trabalho é cada vez mais uma oferta empresarial. A indústria do sexo legalizada prospera sobre manifesto preconceito e discriminação: por exemplo, com anúncios comerciais sobre o tamanho do corpos, a raça e a etnia. Cada vez mais ONG, media e os governos negam a existência e os danos provocados pelo tráfico de crianças para exploração sexual. Se estas leis foram feitas para retirar o estigma sobre as pessoas na prostituição, reduzir a violência e possibilitar uma participação igualitária na sociedade e um emprego sustentável, nada disto foi conseguido!

Concluindo…

A Alemanha e a Nova Zelândia aprovaram o comércio do sexo e enquadraram a prostituição como uma indústria legítima. As leis que regem a prostituição na Alemanha e na Nova Zelândia são frequentemente retratadas como marcadamente diferentes. A distinção entre os modelos alemão e neozelandês, no entanto, é mínima e nenhuma das legislações nacionais atingiu os seus objetivos declarados. Embora a lei alemã seja atualmente considerada um fracasso,[1] a abordagem da Nova Zelândia é ainda vista, em Portugal, como uma forma “progressista” de lidar com a prostituição. Ambas as leis, no entanto, expandem o comércio sexual, empoderam os compradores de sexo, legitimam proxenetas e donos de bordéis e aumentam o tráfico sexual. E em ambos os países, persiste a marginalização sistémica e mantêm-se as vulnerabilidades acrescidas pelas pessoas em situação de prostituição.

O que a JS está a dizer é que defende em Portugal o modelo de política pública em vigor na Nova Zelândia, um modelo que apenas irá beneficiar proxenetas e compradores de sexo, em nada alterando as dinâmicas de poder e a violência na prostituição, as vulnerabilidades sistémicas em que vivem a maioria das mulheres na prostituição nem tão pouco o estigma social e o preconceito de estar em situação de prostituição.

Saiba mais sobre o sistema da prostituição no site Campanha EXIT.

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[1] Já em 2017, face ao falhanço desta lei da prostituição declarado por vários partidos políticos, foram introduzidas emendas na lei, em concreto: licenciamento obrigatório e aconselhamento para as pessoas na prostituição; obrigação do uso de preservativo para os compradores de sexo; criminalização da compra de sexo a vítimas de tráfico; regulamentação mais restrita para abrir e manter um bordel; são considerados ilegais os anúncios a “renda por sexo”, a “gangbang” e à compra de sexo a mulheres grávidas; chama-se a atenção para proxenetas pararem práticas exploradoras. Não obstante, mesmo estas emendas já são consideradas insuficientes e novas alterações estão a ser equacionadas.

2 comentários em “Desmontar a (falácia da) regulamentação e da descriminalização da prostituição”

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