Contributos: V Plano de Ação para a Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos (PAPCTSH)
A Estratégia da UE em matéria de luta contra o tráfico de seres humanos, 2021-2025 é perentória na afirmação de que o tráfico de seres humanos é um tipo de criminalidade que radica das desigualdades em particular entre mulheres e homens: a maioria das vítimas são mulheres e raparigas (72%) traficadas para exploração sexual, e perto de uma em cada quatro vítimas é criança. A exploração sexual corresponde a 60% e a laboral 15%. Três em cada 4 traficantes são homens.
Não obstante, a proposta do V PAPCTSH não evidencia as diferenças que existem entre mulheres e homens enquanto vítimas, traficantes e quem compra serviços e produtos realizados por vítimas de TSH. Tal é ainda mais preocupante quando a nova Estratégia da UE “tem um enfoque especial nas mulheres e nas crianças”, como referido no V PAPCTSH (pág. 5) e a proposta em consulta pública ignora esse enfoque.
Por exemplo, o draft do V PAPCTSH apenas menciona a exploração sexual uma única vez e no enquadramento no contexto da guerra entre a Ucrânia e a Rússia. Sendo, em Portugal, os números oficiais de mulheres e raparigas traficadas para fins de exploração sexual particularmente baixos e em contraciclo com os números dos restantes países da UE, importará perceber a razão para tal facto. Assim, é nosso entendimento que o novo Plano deve ter este facto presente e, nesse sentido, contemplar uma avaliação do processo de recolha de dados e dos seus instrumentos, a fim de identificar as lacunas e os desafios, com o objetivo de reconstrução do processo e instrumentos. E essa avaliação é enquadrável na medida que consta no draft do V PAPCTSH “Melhorar o sistema de reporte de vítimas de tráfico de seres humanos, consolidando as vítimas que são registadas nos diferentes sistemas intervenientes.”
Muito frequentemente as dinâmicas do tráfico de seres humanos estão relacionadas com as dinâmicas da imigração. Em Portugal a imigração de pessoas vindas dos PALOPs é muito significativa. Tem-se registado, nos últimos anos, um incremento da dinâmica migratória por parte de mulheres brasileiras – em 2020, entre imigrantes do Brasil, 56% eram mulheres.[1] Há relatos de mulheres brasileiras a quem lhes é retirado o passaporte, passando assim a não deter qualquer documento identificativo na sua posse. Importa, neste âmbito, ter presente a Resolução do Parlamento Europeu (2014) sobre as mulheres migrantes indocumentadas na União Europeia
Art.º 4º “(…) a imigração é uma questão particularmente atual e que é necessário um quadro jurídico comum para as políticas de migração, que proteja os migrantes e as potenciais vítimas, especialmente mulheres e crianças, vulneráveis a várias formas de crime organizado no contexto da migração e do tráfico de seres humanos;”
Ainda, recentemente o Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) adotou a Recomendação Geral n.º 38 (2020) sobre o tráfico de mulheres e meninas no contexto da migração global, referindo que
- 4 “Os Estados Parte devem adotar todos os meios apropriados para a erradicação do tráfico e da exploração da prostituição e assegurar que existem leis, sistemas, regulamentos e financiamento adequados para tornar este direito efetivo e não apenas ilusório”.
É assim relevante ter em devida consideração a redução da procura que fomenta o tráfico – que é uma das prioridades da Estratégia europeia acima referida. O desencorajamento da procura é uma das medidas de prevenção que passa pelo reforço de ações que visem reduzir a procura e aumentar a criminalização da utilização consciente por parte de quem compra serviços prestados por vítimas de tráfico.
Ora, nessa lógica será particularmente pertinente que o V PAPCTSH contemple campanhas de conscientização dirigidas a compradores de sexo, enquadráveis na medida “Aprofundar a prevenção primária como prioridade fundamental nos eixos da informação e sensibilização sobre a temática do TSH para públicos diversos e de disseminação ampla”.
Há algumas propostas apresentadas pela PpDM na Proposta de Estratégia Nacional de Prevenção e Apoio à Saída do Sistema de Prostituição, nos eixos Prevenção e Conscientização, que são passíveis de serem consideradas na medida acima referida:
- A cooperação e atuação transnacional célere e efetiva na identificação e prevenção de situações de tráfico de raparigas e jovens mulheres e aliciamento.
- A disseminação de informação, nos locais de entrada no país, de respostas de apoio (com garantia de segurança) a vítimas de tráfico (por exemplo, Linha Telefónica de Apoio), em estreita colaboração com o Plano de Ação para a Prevenção e o Combate ao Tráfico de Seres Humanos.
Há ainda outras propostas que podem ser consideradas, como, por exemplo:
- Para a medida do V PAPCTSH “Reforçar as medidas de proteção e de apoio junto das vítimas”:
- A criação de uma linha telefónica permanente de apoio às pessoas em situação de prostituição, com os seguintes objetivos: fornecer apoio psicossocial; prestar informação sobre respostas às necessidades; desencadear e coordenar uma resposta de emergência para saída do sistema.
- O incremento e melhoria das estruturas de apoio de emergência para vítimas de tráfico ou de aliciamento para prostituição e a disponibilização de uma Linha de Contacto de Emergência, amplamente divulgada, quer nos locais de entrada no país, quer em zonas de maior concentração de prostituição.
- Modificação da lei relativamente às situações das vítimas de tráfico, nomeadamente, nos pressupostos legais acerca da denúncia (por exemplo, alargando a duração do “período de reflexão”); na proteção e segurança garantidas às pessoas durante esse período de reflexão (e depois dele, dada a perigosidade reconhecida das redes internacionais de tráfico) e na regularização da sua situação no país.
- Para a medida do V PAPCTSH “Promover uma maior capacitação das vítimas” a possível adaptação das várias medidas que constam no eixo Valorização e capacitação das mulheres (páginas 201 e 202 do Estudo Diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa).
- Para a medida do V PAPCTSH “Promover a prevenção e o combate ao TSH por parte dos operadores económicos ao longo de toda a cadeia de valor e fornecimento, e ao nível da contratação pública”:
- A colaboração com entidades privadas, designadamente do setor turístico, hoteleiro e de diversão, na celebração de compromissos de combate ao tráfico de seres humanos, à prostituição e à pornografia.
Finalizamos com uma nota relativa à importância de assegurar um financiamento robusto, regular e previsível, desejavelmente inscrito em Orçamento do Estado, para o trabalho das organizações que prestam serviços a pessoas traficadas, designadamente mulheres e crianças, e que se pautam por uma intervenção enquadrada pelos Direitos Humanos das Mulheres e Igualdade entre Mulheres e Homens. Esta nota é tão mais importante quanto, com surpresa e apreensão, ao analisarmos as GOP 2022-2026 verificamos que o investimento previsto na área de política “Igualdade de Género e combate às discriminações” diminui em cerca de 50% entre 2022 e 2024.
A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, membro da Plataforma da Sociedade Civil Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos, manifesta o seu interesse e disponibilidade para aprofundar os seus contributos no V PAPCTSH e para integrar a Rede de apoio e Proteção às Vítimas de Tráfico (RAPVT).
[1] Fonte: OLIVEIRA, Catarina Reis (2021), Indicadores de integração de imigrantes: relatório estatístico anual 2021. 1ª ed. (Imigração em Números – Relatórios Anuais 6).
A consulta pública ao V Plano de Ação Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2022-2025, decorreu entre 19 e 26 de outubro conforme informação disponibilizada no site da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
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