Apelo do Lobby Europeu das Mulheres (LEM) à Amnistia Internacional: proteger os direitos humanos de TODAS as mulheres e raparigas para se construir uma sociedade baseada na igualdade, na justiça e no respeito
Esta semana, representantes da Amnistia Internacional vão reunir-se para discutir, entre outras questões, uma política de “trabalho sexual”, que defende a descriminalização do “trabalho sexual”. O Lobby Europeu das Mulheres (LEM) está profundamente preocupado com este posicionamento da Amnistia Internacional, que acreditamos terá um impacto negativo sobre as vidas não só das pessoas atualmente envolvidas na prostituição (tenham elas sido traficadas ou não), mas também na vida de todas as mulheres e raparigas, e sobre a realização da igualdade entre mulheres e homens.
É claro que a Amnistia Internacional tem – em cooperação com organizações de direitos das mulheres, bem como de forma independente – trabalhado muito na promoção dos direitos humanos das mulheres e na integração dos direitos das mulheres na agenda de direitos humanos. O LEM e os seus membros têm trabalhado em conjunto com a Amnistia Internacional, apoiando-a e às suas seções nacionais e escritório junto das instituições Europeias ao longo dos últimos anos, em várias campanhas relacionadas com os direitos das mulheres, como a violência contra as mulheres, os direitos e a saúde sexual e reprodutiva das mulheres, ou a mutilação genital feminina. Na nova posição da Amnistia Internacional sobre “trabalho sexual”, não se descortina, no entanto, qualquer perspetiva clara sobre direitos das mulheres, para além de uma referência a “as mulheres constituem a maioria dos trabalhadores do sexo a nível mundial”. O lado da procura da prostituição praticamente não é abordado, quando se sabe ser constituído maioritariamente por homens, o que constitui um indicador importante das relações de género no sistema da prostituição. Esta realidade deveria fornecer uma visão clara sobre as ligações entre o sistema da prostituição e a sociedade em geral, na qual as desigualdades estruturais entre mulheres e homens são, infelizmente, ainda a norma.
Não entendemos, portanto, qual a razão pela qual a política proposta pela Amnistia Internacional não aborda a questão da prostituição como parte de um sistema mais amplo, no qual os direitos humanos das mulheres e das raparigas/meninas continuam a ser sistematicamente violados, no qual a sexualização e a pornografia desempenham um papel na transmissão de imagens negativas e estereótipos sobre as mulheres, e no qual o acesso ao corpo das mulheres é apresentado como algo a que os homens têm inerentemente direito. Ao neutralizar as dinâmicas de poder nas relações de género presentes no sistema da prostituição, a Amnistia Internacional põe em perigo a sua visão universal dos direitos humanos.
É claro que existe um consenso global sobre a descriminalização das pessoas envolvidas na venda de sexo. Apoiamos muito fortemente esta visão, e apoiamos as organizações e coligações que lutam para se livrarem das leis nacionais que criminalizam as pessoas que se prostituem, como na França, na Irlanda ou no Reino Unido. Mas esta proposta de descriminalização do “trabalho sexual” vai muito para além da promoção dos direitos humanos: trata-se de legitimar todo um sistema que implica muitos intervenientes, incluindo compradores de sexo, proxenetas e traficantes que não se preocupam com os direitos humanos. Será que a Amnistia Internacional vota numa política que considera que descriminalizar proxenetas e compradores de sexo irá apoiar eficazmente os direitos humanos das pessoas em situação de prostituição? Não sejamos ingénuas/os sobre a realidade da indústria do sexo. Sejamos corajosas/os o suficiente para ter um olhar crítico sobre as suas relações de poder, o seu funcionamento, a quem beneficia, e como fomenta o tráfico.
Acreditamos fortemente que o sistema de prostituição está no cerne do atual patriarcado/ sistema neoliberal / neocolonial e desempenha um papel fundamental na sua perpetuação. Sabemos por evidência que a grande maioria das pessoas na prostituição são mulheres, de grupos minoritários, incluindo as pessoas transsexuais, de comunidades indígenas, de comunidades de castas mais baixas, dos países mais pobres … e que elas são cada vez mais jovens. Isto não é por acaso: o sistema da prostituição amplifica as múltiplas desigualdades e discriminações. E isso é perpetuado por uma procura por parte daqueles que têm poder e recursos: principalmente os homens. Enquanto não transformarmos as nossas sociedades e mentalidades (inclusive através de legislação), vamos continuar a ver as pessoas mais vulneráveis usadas por um sistema orientado para o lucro.
A descriminalização de todo um sistema que beneficia de desigualdades não vai reforçar os direitos humanos das pessoas nesse sistema. Pelo contrário, reforça a impunidade daqueles que beneficiam das desigualdades e injustiças.
A missão da Amnistia Internacional é “fazer campanha por um mundo onde os direitos humanos são gozados por todas/os”: gostaríamos de ver uma visão mais abrangente dos direitos humanos como um projeto coletivo para as nossas sociedades. Gostaríamos de ver uma perspetiva dos direitos humanos das mulheres mais forte no documento da Amnistia Internacional, especialmente num contexto em que os direitos humanos das mulheres estão sob ataque a todos os níveis, e os instrumentos de direitos humanos existentes necessitam de apoio reforçado.
Do ponto de vista das organizações de direitos das mulheres, a possibilidade de uma política global da Amnistia Internacional sobre a descriminalização da indústria do sexo constituiria um retrocesso real, um passo atrás no reconhecimento dos direitos das mulheres como totalmente integrados no espectro dos direitos humanos. Instamos as/os delegadas/os da Amnistia Internacional a não apoiarem este movimento, a trabalharem mais estreitamente com as organizações de direitos das mulheres por forma a obterem mais evidência, especialmente das organizações que trabalham na linha da frente com pessoas em situação de prostituição, e para ouvirem sobreviventes.
Saiba mais sobre a campanha do LEM “Juntas/os por uma Europa livre de prostituição“.
Leia “18 mitos sobre a prostituição“, com fatos e números, comparando a situação na Suécia e nos Países Baixos.
Texto original aqui.
A PpDM constitui a coordenação em Portugal do Lobby Europeu das Mulheres (LEM).